BRANDÃO,
Carlos Rodrigues. O que é educação.
Ed. Brasiliense/ Abril Cultural, São Paulo, 1985.
Educação?
Educações: Aprender com o índio
Há
muitos anos nos Estado Unidos, Virgínia e Maryland assinaram um tratado de paz
com os índios das Seis Nações. Em troca de cartas entre os nativos e os
colonos, estes últimos convidavam os filhos de índios a fazerem parte das suas
escolas. Contudo os índios retrucaram: “ ... Muitos de nossos bravos guerreiros
foram formados nas escolas do Norte e aprenderam toda a vossa ciência. Mas,
quando eles voltaram para nós, eles eram maus corredores, ignorantes da vida na
floresta e incapazes de suportarem o frio e a fome. Não sabiam como caçar
veado, matar o inimigo e construir uma cabana, e falavam a nossa língua muito
mal. Eles eram portanto totalmente inúteis. Não serviam como guerreiros, como
caçadores ou como conselheiros.”
Depreende-se
a partir daí, que não há uma forma única, nem um modelo único de educação; a
escola não é o único lugar onde ela aparece; o ensino escolar não é a única
prática e o professor profissional não é o único praticante.
A educação pode existir livre e,
entre todos, pode ser uma das maneiras que as pessoas criam para tornar comum,
como o saber, como a idéia, como crença, aquilo que é comunitário como bem,
como trabalho ou como vida. Ela pode existir imposta por uma sistema
centralizado de poder, que usa o saber e o controle sobre o saber como armas
que reforçam a desigualdade entre os homens, na divisão dos bens, do trabalho,
dos direitos e dos símbolos.
A
educação é, como outras, uma fração do modo de vida dos grupos sociais que a
criam e recriam, entre tantas outras invenções de sua cultura, em sua
sociedade.
Assim, quando são necessários
guerreiros ou burocratas, a educação é um dos meios de que os homens lançam mão
para cria-los passando a eles o saber que os constitui e os legitima. Mais
ainda, a educação participa do processo de crenças e idéias, de qualificações e
especialidades que envolvem as trocas de símbolos, bens e poderes que, em conjunto,
constróem tipo de sociedades. E esta é a sua força.
No
entanto, pensando às vezes que agem por si próprio, livre e em nome de todos, o
educador imagina que serve ao saber e a quem ensina mas, na verdade, ele pode
estar servindo a quem o constituiu professor, a fim de usá-lo, e ao seu
trabalho, para os usos escusos que ocultam também na educação – nas suas
agencias, suas práticas e nas idéias que ele professa – interesses políticos
impostos sobre ela e, através do seu exercício, à sociedade que habita.
Quando
a Escola é a Aldeia
Nós, animais, aprendemos tanto
utilizando-se do instinto (dentro para fora), como também com o convívio com
outros animais da mesma espécie (fora para dentro). Na espécie humana a educação não continua
apenas o trabalho da vida. Ela se instala dentro de um domínio propriamente
humano de trocas: de símbolos, de intenções, de padrões de cultura e relações
de poder. Mas, a seu modo, ela continua no homem o trabalho de fazê-lo evoluir,
de torna-lo mais humano. É esta a idéia que Werner Jaeger tem na cabeça quando,
num estudo sobre a educação do homem grego, procura explicar o que ela é,
afinal: “(...) Na educação como o homem na prática, atua a mesma força vital,
criadora e plástica, que espontaneamente impele todas as espécies vivas à
conservação e à propagação de seu tipo. É nela, porém, que essa força atinge o
seu mais alto grau de intensidade, através do esforço consciente do
conhecimento e da vontade, dirigida para a consecução de um fim.” Porém, quando um povo alcança um estágio
complexo de organização de sua sociedade e de sua cultura; quando ele enfrenta
por exemplo, a questão da divisão social
do trabalho e, portanto, do poder, é que ela começa a viver e pensar como
problema as formas e os processos de transmissão do saber. É a partir de então
que a questão da educação emerge à consciência e o trabalho de educar
acrescenta à sociedade, passo a passo, os espaços, sistemas, tempos, regras de
prática, tipos de profissionais e categorias de educandos envolvidos nos
exercícios de maneiras cada vez menos corriqueiras e menos comunitárias no ato,
afinal tão simples, de ensinar-e-aprender.
Nas
sociedades tribais, o aprendizado acontece geralmente enquanto a criança vê,
entende, imita e aprende com a sabedoria que existe no próprio gesto de fazer a
coisa. Émile Durkheim explica dessa forma: “Sob regime tribal, a característica
essencial da educação reside no fato de ser difusa e administrada
indistintamente por todos os elementos do clã. Não há mestres determinados, nem
inspetores especiais para a formação da juventude: esses papeis são
desempenhados por todos os anciãos e pelo conjunto das gerações anteriores.”
Assim, de acordo com um antropólogo estudioso de uma comunidade em Nova Guiné:
“ (...) O orgulho do trabalhador e o prestígio do bom artesão dominam sua vida
e elas necessitam de muito pouco estímulo para procura-los por si mesmas”.
Todos esses saberes envolvem situações pedagógicas interpessoais, onde ainda
não surgiram técnicas pedagógicas escolares, acompanhadas de seus profissionais
de aplicação exclusiva. Nessas comunidades todos aprendem através da sabedoria
do grupo social e da força da norma dos costumes da tribo. O saber os torna
aptos socialmente, reconhecidos e legitimados para a convivência social, o
trabalho, as artes da guerra e os ofícios do amor.
Em todos grupos sociais mais
simples, se incluem estas situações pedagógicas: treinamento de habilidades
corporais através da prática; a
estimulação dirigida, para que o aprendiz faça e repita, até o acerto, os atos de
saber e habilidade que ignora; a observação livre e dirigida; a correção interpessoal, familiar ou
comunitária, das práticas ou das condutas erradas, por meio do castigo, do
ridículo ou da admoestação; a assistência convocada para cerimônias rituais e, aos
poucos (ou depois de uma iniciação, o direito a participação nessas cerimônias
(solenidades religiosas, danças, rituais de passagem) (...).
Assim, tudo que é importante para
comunidade, e existe como algum tipo de saber, existe também como algum tipo de
ensinar. Mesmo sem a escola formal, cada sociedade desenvolve situações,
recursos e métodos de aprendizado para
seus membros. Enfim, são várias as formas de ensinar-e-aprender.
Ao processo global que tudo envolve
[ensinar-e-aprender], é comum que se dê o nome de socialização. Através dela,
ao longo da vida, cada um de nós passa por etapas sucessivas de inculcação de
tipos de categorias gerais, parciais ou especializadas de saber-e-habilidade.
Elas fazem em conjunto, o contorno da identidade, da ideologia e do modo de
vida de um grupo social. A socialização realiza em sua esfera as necessidades e
projetos da sociedade e, em cada indivíduo, o capacita para viver dentro dela.
No interior de todos os contextos
sociais coletivos de formação do adulto, o processo de aquisição pessoal de
saber-crença-e-hábito, pode ser chamado de endoculturação. Tudo que se aprende
de um modo ou de outro faz parte do processo de endoculturação.
Então,
surge a escola
Mesmo em sociedades primitivas e
simples, quando o trabalho que produz os bens e o poder que reproduz a ordem
são divididos e começam a gerar hierarquias sociais, também o saber comum da
tribo se divide, começa a se distribuir desigualmente e pode passar a servir ao
uso político de reforçar a diferença, no lugar de um saber anterior, que
afirmava a comunidade.
Então é o começo de quando a
sociedade separa e aos poucos opõe: o que faz, o que se sabe com o que se faz e
o que se faz com o que se sabe. Então é
quando entre outras categorias de especialidades sociais, aparecem as de saber
e de ensinar a saber. Este é o começo do momento em que a educação vira o
ensino, que inventa a pedagogia, reduz a aldeia à escola e transforma “todos”
no educador.
Num plano mais restrito e mais
marcadamente político, diferentes categorias de meninos e meninas recebem o
saber especializado quer há em uma “educação de minorias privilegiadas”,
destinadas por herança aos cargos de chefia. Assim acontece por exemplo em
quase todos os grupos originais do Havaí, onde os nobres e outros jovens
relacionados de antemão para postos futuros de poder sobre os outros passavam
por verdadeiros cursos superiores de estudos que lhes tomavam quase todo o
tempo da adolescência e da juventude. A tribo que mais adiante submeterá a eles
a chefia comunitária – o trabalho social de dirigir – atribuirá a eles como um
direito, e exigirá deles como um dever, o saber especializado do chefe. E o
próprio tempo prolongado de estudo, treino e teste, muito mais do que o de todos os outros meninos vale
como um atestado social de diferenças entre o chefe e os outros, dado pela
educação.
Em
todo o tipo de comunidade humana onde ainda não há uma rigorosa divisão social
do trabalho entre classes desiguais, e onde o exercício social do poder ainda
não foi centralizado por uma classe como um Estado, existe a educação sem haver
a escola e existe a aprendizagem sem haver o ensino especializado e formal,
como um tipo de prática social separada das outras. E da vida.
Depreende-se
então, que aos poucos acontece com a educação o que acontece com todas as
outras práticas sociais (a medicina, a religião, o bem-estar, o lazer) sobre as
quais um dia surge um interesse político de controle. Também no seu interior,
sistemas antes comunitários de troca de bens, de serviços e de significados são
em parte controlados por confrarias de especialistas, mediadores entre o poder
e o saber.
Por toda a
parte onde ela deixa de ser livre e comunitária (não escrita) e é presa na
escola, entre as mãos de educadores a serviço de senhores, ela tende a inverter
a utilização de seus frutos: o saber e a repartição do saber. A educação da
comunidade de iguais que reproduzia em um momento anterior a igualdade, ou a
complementaridade social, por sobre diferenças naturais, começa reproduzir
desigualdades sociais por sobre igualdades naturais, começa desde quando aos
poucos usa a escola, os sistemas pedagógicos e as “leis do ensino” para servir
ao poder de uns poucos sobre o trabalho e a vida de muitos.
Da maneira como existe entre nós, a
educação surge na Grécia e vai para Roma, ao longo de muitos séculos da
história de espartanos, atenienses e romanos. Deles deriva todo o nosso sistema
de ensino e, sobre a educação que havia em Atenas, até mesmo as sociedades
capitalistas mais tecnologicamente avançadas têm feito inovações.
Pedagogos,
Mestres-Escola e Sofistas
A educação grega é dupla, carrega
dentro dela a oposição que até hoje a nossa educação não resolveu. Ali estão
normas de trabalho que, quando reproduzidas como um saber que se ensina para
que se faça, os gregos acabaram chamando de tecne e que, nas suas
formas mais rústicas e menos enobrecidas, ficam relegadas aos trabalhadores
manuais, livres ou escravos. Ali estão normas de vida que, quando reproduzidas
como um saber que se ensina para que se viva e seja um tipo de homem livre e,
se possível, nobre, os gregos acabaram chamando de teoria. Este saber que busca no homem livre o seu mais pleno
desenvolvimento e uma plena participação na vida da polis é o próprio ideal
da cultura grega e é o que ali se tinha
em mente quando se pensava na educação. Os gregos sempre conservaram a idéia de
que o saber se transfere através da educação. Circula através das trocas
interpessoais, de relações físicas e simbolicamente afetivas entre as pessoas.
Aquilo que a cultura grega com pleno
efeito de educação – paideia – dando à palavra o sentido de formação harmônica
do homem para a vida da polis, através do desenvolvimento de todo o corpo e
toda a consciência, começa de fato fora de casa, depois dos sete anos. Até lá,
a criança convive com sua criação, convivendo com a mãe e escravos domésticos.
Os escravos estão à margem da paidéia.
Apenas
quando a democratização da cultura e da participação na vida pública colocam a
necessidade da democratização do saber, é que surge a escola aberta a qualquer
menino livre da cidade-estado. A escola primária surge em Atenas
por volta do ano de 600 A.C. Assim, surgem em Atenas escolas de bairro, não
raro “lojas de ensinar”, abertas entre as outras no mercado. Ali um humilde
mestre-escola, “reduzido pela miséria a ensinar”, leciona as primeiras letras e
contas. O menino livre e plebeu em geral pára nela. O menino livre e nobre
passa por ela depressa em direção aos lugares e aos graus onde a educação grega
forma de fato o seu modelo de “adulto educado”.
De um lado, a prática de instruir
para o trabalho; de outro, a de educar para a vida e o poder que determina a
vida social.
Mesmo no nível de cultura letrada
dos nobres, a civilização clássica não conservou sempre um único modelo e
estilo de saber, logo, de educação. Ela oscilou entre duas formas de algum modo
antagônicas: a filosófica, cujo tipo dominante pode ser Platão, e a Oratória
(retórica), cujo tipo dominante pode ser Sócrates.
Apesar de tudo, são os filósofos
sofistas os que democratizam o ensino superior, tonando-o remunerado e,
portanto, aberto a todos os que podem pagar. Os sofistas transformam a educação
superior em um tempo de formação do orador, onde a qualidade da retórica tem
mais valor do que a busca desinteressada da verdade, exercício dos nobres dos
períodos anteriores.
Depois,
com Aristóteles e Alexandre Magno, muito
depressa com a civilização Helenística, a educação passa por algumas
mudanças: 1) ela vai do cultivo aristocrático do corpo e da mente, com vistas à
formação do nobre guerreiro e dirigente, à habilitação do cidadão livre, comum,
para a carreira política; 2) ela vai de um domínio do “saber desinteressado”,
de fundo artístico-musical, para o literário, daí para o retórico, o livresco e
o escolar (de aprender a sabedoria para aprender a informação); 3) ela vai das
agências de reprodução restrita do saber de nobres, entre nobres, para o saber
disponível, à venda em escolas pagas que educam da criança ao adulto. Ou seja, com o tempo a educação clássica
deixa de ser um assunto privado, posse e questão da comunidade dos nobres
dirigentes, e passa a ser questão de estado, pública.
Assim, a educação grega não é
dirigida à criança no sentido cada vez
mais dado a ela hoje em dia. De algum modo, é uma educação contra a
criança, que não leva em conta o que ela é, mas olha para o modelo do que pode
ser, e que anseia torná-la depressa o jovem perfeito (o guerreiro, o atleta, o
artista de seu próprio corpo-e-mente) e o adulto educado (o cidadão político a
serviço da polis).
Finalmente os gregos ensinam o que
hoje esquecemos. A educação do homem existe por toda parte e, muito mais do que
a escola, é o resultado da ação de todo o meio sociocultural sobre seus
participantes. É a comunidade quem responde pelo trabalho de fazer com que tudo
o que pode ser vivido-e-aprendido da cultura seja ensinado com a vida – e
também com a aula – ao educando.
Educação
que Roma fez, e o que ela ensina
Quando uma nobreza romana
enriquecida pela agricultura e pelo saque abandona o trabalho da terra pelo o
da política, e cria as regras do Império de que se serve, aquele primitivo
saber comunitário se divide e força a separação de tipos, níveis e agencias de
educação. Quando há livres e escravos, senhores e servos, começa a haver um
modelo de educação para cada um, e limites entre um modelo e outro.
A
educação que serve, longe da Pátria, aos filhos dos soldados e funcionários
romanos sediados entre os povos vencidos, serve também para impor sobre eles a
vontade e a visão do mundo do dominador.
Educação:
Isto e Aquilo, e o contrário de tudo
A educação segundo alguns
dicionários:
Dentro
para fora: “Ação e efeito de educar, desenvolver as faculdades físicas,
intelectuais e morais da criança e, em geral do ser humano; disciplinamento,
instrução e ensino” (Dicionários contemporâneo da língua portuguesa, Carlos
Aulete)
Fora
para dentro: “Ação exercida pelas gerações adultas sobre as gerações jovens
para adaptá-las à vida social; trabalho sistematizado, seletivo, orientador,
pelo qual nos ajustamos à vida, de acordo com as necessidades ideais e
propósitos dominantes; ato ou efeito de educar; aperfeiçoamento integral e
todas as faculdades humanas, polidez, cortesia”. (Pequeno dicionário de Língua
Portuguesa, Aurélio Buarque de Holanda)
Os nossos legisladores, falam a
respeito de uma educação idealizada, ou falam da educação através de uma
ideologia: “Art. 1º - A educação Nacional, inspirada nos princípios da
liberdade e os ideais de solidariedade humana, tem por fim: A) A compreensão
dos direitos e deveres da pessoa humana, do cidadão do Estado, da família e dos
demais grupos que compõem a comunidade; B) o respeito à dignidade e às
liberdades fundamentais do homem; o fortalecimento da unidade nacional e da
solidariedade internacional; C) o desenvolvimento integral da personalidade
humana e a sua participação na obra do bem comum; (...) F) preservação do
patrimônio cultural (...).
Intelectuais e estudantes protestam
dizendo que não há igualdade entre os brasileiros e a educação consolida a
estrutura classista que pesa sobre nós.
Docentes universitários reunidos em
um Encontro Nacional de Associações escreveram o seguinte documento final:
“(...) A política educacional implantada levou à progressiva desobrigação do
Estado com o custeio da educação, e à expansão do ensino privado. Assim, a
educação está aberta à ação dos empresários de ensino, sujeitas às leis da
iniciativa privada, sendo negociada como mercadoria entre as partes
interessadas em vender e comprar, o que revela o caráter elitista do atual processo
educacional no Brasil”.
A
razão dos diferentes discursos de como esta sendo administrada a educação no
Brasil, está nas diferentes formas de compreender o que é educação, o que é o
ato de ensinar, o que o determina e, a que e a quem ele serve.
Pessoas
“Versus” Sociedade: Um dilema que oculta outros
I.
Dentro para dentro: Muitas pessoas pensam na educação como uma dimensão
subjetiva. A educação como idéia, deve ser pensada em nome da pessoa e, como
instituição (a escola, o sistema pedagógico) ou como prática (o ato de educar),
deve ser realizada como um serviço coletivo que se presta a cada indivíduo,
para ele obtenha de dla tudo o que precisa para se desenvolver individualmente.
II.
Fora para dentro: Segundo o pensamento dessas pessoas a educação é
resultado de um trabalho intencional e deliberado. Desta forma, a educação
torna-se a parte mais motivada da endoculturação. Esta ação dirigida ao
educando procede de um educador, de uma agência de educação, ou do que existe
de educativo no meio sociocultural.
III.
De fora para dentro e de dentro para fora (Um meio termo): Estão
alguns estudiosos da educação que consideram que não só a pessoa,
individualmente, mas alguma coisa indicada como “a civilização”, o “o meio
social” ou “a sociedade” deve ser o destino do homem educado: “ A Educação é a
organização dos recursos biológicos individuais, e das capacidades de
comportamento que tornam o indivíduo adaptável ao seu meio físico e social”.
Na
verdade que descobriu que na prática o “fim da educação” são os interesses da
sociedade, ou de grupos sociais determinados, através do saber que forma a
consciência que pensa o mundo e qualifica o trabalho do homem educado, não
foram filósofos do passado ou cientistas sociais do presente. Esta é a maneira
natural dos povos primitivos, com quem estivemos até há pouco, tratarem a
educação de suas crianças, mesmo quando eles não sabem explicar isto com
teorias complicadas.
Os índios e os camponeses realizam,
no modo como ensinam o que é importante para alguém aprender, a consciência de
que o saber que se transmite de um ao outro deve servir de algum modo a todos. Esta maneira de compreender para que serve
a educação é decorrência de um “esquecimento”, ou de um ocultamento de que,
afinal, por mais louvável que seja, a educação é uma prática social entre
outras.
No mundo ocidental, é depois do
advento e da difusão do cristianismo que aparecem idéias sobre a educação que
isolam o saber da sociedade e o submetem ao destino industrial do cristão.
É uma nova maneira de definir a
educação como uma prática social cuja a ordem e destino são a sociedade e a
cultura, foi formulada com muita clareza pelo sociólogo francês Émile Durkhein.
Se o fim da educação é desenvolver no homem toda a perfeição de que ele é
capaz, que “perfeição” é está? De onde é que ela procede? Quem a define e quem
a serve? Por que, a final, ideais de perfeição são tão diversos de uma cultura
para outra? É falso imaginar uma educação que não parte da vida real: da vida
tal como existe e do homem tal como ele é.
O que existe de fato são exigências
sociais de formação de tipos concretos de pessoas na e para a sociedade. São
portanto, modos próprios de educar – por isso, diferentes de uma cultura para
outra – necessários à vida e à reprodução da ordem de cada tipo de sociedade,
em cada momento de sua história.
O que ocorre é que ela é
inevitavelmente uma prática social que por meio da inculcação de tipos de
saber, reproduz tipos de sujeitos sociais. “A educação é a ação exercida pelas
gerações adultas sobre as gerações que não se encontram ainda preparadas para a
vida social; tem por objetivo suscitar e desenvolver na criança certo número de
estados físicos, intelectuais e morais
reclamados pela sociedade política no seu conjunto e pelo meio espacial a que a
criança, particularmente, se destina.” (Durkhein)
Não é que eles tivessem a proposta
de uma “nova escola”, menos abstrata e desancorada do que a “Educação
Humanista” que criticavam. O que eles
buscavam fazer foi esclarecer mais e mais com a sociedade e a cultura
funcionam, na realidade. Como, portanto, a educação existe dentro delas e
funciona sob a determinação de exigências, princípios e controles sociais.”
Sociedade
contra o Estado: Classe e educação
A idéia de que não existe coisa
alguma de social na educação; de que, como arte, ela é “pura” e não deve ser
corrompida por interesses e controles sociais, pode ocultar o interesse
político de usar a educação como uma arma de controle, e dizer que ela não tem
nada a ver com isso.
Como outras práticas sociais
constitutivas, a educação atua sobre a vida e o crescimento da sociedade em
dois sentidos: 1) no desenvolvimento de suas forças produtivas; 2) no
desenvolvimento de seus valores culturais.
Durkheim, quando indaga sobre que
“perfeição” é essa em que crêem os intelectuais e pensadores, conclui
internamente que não pode existir uma espécie de “educação universal”, cabível,
sob mesma forma, em todas as sociedades. Cada tipo de sociedade real,
histórica, cria e impõe o tipo de educação de que necessita. Ele diz ainda que:
“ (...) cada sociedade considerada em momento determinado de seu
desenvolvimento, possui um sistema de educação que se impõe aos indivíduos de
modo geralmente irresistível. É uma ilusão acreditar que podemos educar nossos
filhos como queremos...”.
As idéias de que a educação não
serve apenas à sociedade, ou à pessoa na sociedade, mas à mudança social e à
formação conseqüente de sujeitos e agentes na/da mudança social, pode não estar
escrita de maneira direta nas “leis do ensino”. Afinal, as leis quase sempre
são escritas por quem pensa que nem elas nem o mundo vão mudar um dia.
“ A Educação Permanente é uma
concepção dialética da educação, como um duplo processo de aprofundamento,
tanto da experiência social como da vida social, que se traduz pela
participação efetiva, ativa e responsável de cada sujeito envolvido, qualquer
que seja a etapa de existência que esteja vivendo. ...O primeiro imperativo que
deve preencher a Educação permanente é a necessidade que todos temos de sempre
aperfeiçoar a nossa formação profissional (...) “ (Pierre Furter)
A proposta que leva a educação, tão
somente, ao nível de poder suficiente para realizar, o trabalho de transformar
a sociedade, e que portanto, eleva também o professor à condição de super-homem
pode ser considerada um “utopismo pedagógico”. Associar “educação” a “mudança”
não é novidade. Tem sido um costume desde, pelo menos, as primeiras décadas do
século. Mas só um pouco mais tarde, quando políticos e cientistas começaram a
chamar “mudança” de “desenvolvimento” (desenvolvimento social,
socioeconômico...), é que foi lembrado que a educação deveria associar-se a ele
também.
Antes de se difundirem pelo mundo as
idéias de mudança e de necessidade de mudança social, a educação era pensada
como alguma coisa que preserva, que conserva, que resguarda justamente de se
mudarem, de se perderem, as tradições, os costumes e os valores de “um povo”,
“uma cultura” ou “uma civilização”.
Antes de se inventarem políticas de desenvolvimento, a educação era prescrita
como direito de uma pessoa, como um investimento.
“ Investimento”, “ Mão-de-obra”,
“preparação para o trabalho”, “capacidades técnicas adequadas”... são os nomes
que denunciam o momento em que os interesses políticos de emprego de uma força
de trabalho “adequadamente qualificada” misturam a educação antiga da oficina
com a da escola, reduzem o seu compromisso aristocrata com a “pura” formação da
personalidade e inscrevem o ato de educar entre as práticas político-econômicas
das “arrancadas para o desenvolvimento”.
Como já foi escrito, até há alguns
anos atrás, o universo da educação estava dividido por aqui tal como na Grécia
e em Roma, há muitos séculos. Nas primeiras décadas deste século, políticos e
educadores liberais trouxeram idéias novas para a educação no país. O ensino
tornaria-se público, laico, estendido a todas as pessoas. Seria reconhecido o
direito político de estudar. As novas elites capitalistas, ao pegarem as novas
idéias de educação voltada para a vida, a mudança, o progresso, a democracia,
traduziam ao mesmo tempo o imaginário democrático de seu tempo e, por outro
lado, o projeto político que serviria aos interesses de novos do poder e da
economia. São novos tempos e novos modelos de controle do exercício de
cidadania e de preparação de “quadros” qualificado para o trabalho das
fábricas. Fala-se dos tempos de Getúlio Vargas, onde o eixo econômico foi
transferido do campo para a cidade, da agricultura para a indústria. Este
progressivo ingresso da criação pobre nas salas das escolas, associado a uma
redefinição do ensino escolar em direção ao trabalho produtivo, não fez mais do
que trazer para dentro dos muros do colégio a divisão anterior entre o
aprende-na-oficina para o trabalho subalterno e o aprender-na-escola para o
trabalho dominante.
A educação perde a sua dimensão de
um bem de uso e ganha a de um de bem de troca. Ela não vale mais pelo que é e
pelo que representa para as pessoas. A educação vale como um bem de mercado, e
por isso é paga e às vezes custa caro. Esta é a dupla dimensão de valor
capitalista: A) Vale alguma coisa cujo a posse se detém para uso próprio ou de
grupos reduzidos, que se vende e compra; B) Vale como instrumento de controle
das pessoas, das classes sociais subalternas, pelo poder de difusão das idéias
de quem controla o seu exercício.
Mas enfim, a ideologia que fala
através das leis, decretos e projetos de educação autoritária nega acima de
tudo que ela seja uma pedagogia contra o homem – contra a verdadeira liberdade
do homem através do saber, que existe através da verdadeira igualdade entre os
homens. É por isso que existem as “leis do ensino” que afirmam com fé de ofício
os valores de uma suposta democracia feita através da educação.
A
esperança na educação
Se a educação é determinada fora do
poder de controle comunitário dos seus praticantes, educandos e educadores
diretos, por que participar dela, da educação que existe no sistema escolar
criado e controlado por um sistema político dominante? Se na sociedade
desigualdade que ela reproduz e consagra
a desigualdade social, deixando no limite inferior de seu mundo os que são para
ficar no limite inferior do mundo do trabalho (os operários e os filhos de
operários), e permitindo que minorias reduzidas cheguem ao seu limite superior,
por que acreditar ainda na educação? Se ela pensa e faz pensarem o oposto do
que é, na prática do seu dia a dia, por que não forçar o poder de se pensar e
colocar em prática um outra educação?
A resposta é simples: “porque a
educação é inevitável”. Uma outra, melhor seria: “porque a educação sobrevive
aos sistemas e, se em um ela serve à reprodução da desigualdade e à difusão de
idéias que legitimam a opressão, em outro pode servir à criação da igualdade
entre os homens e à pregação da liberdade”.
“Reinventar a educação” é uma expressão
cara a Paulo Freire; ao fazer a crítica da educação capitalista, que ora chamou
de “educação bancária”, ora de “educação do opressor”, ele sempre quis
desarmá-la da idéia de que ela é maior do que o homem. Ele sempre quis livrar a
educação de ser um fetiche. De ser pensada como uma realidade supra-humana e,
por isso, sagrada, imutável e assim por diante. É preciso dessacralizar a
educação, pois apenas os que se interessam por fazer da educação a arma de seu
poder autoritário tornam-na “sagrada” e o educador, “sacerdote”. Para que
ninguém levante um gesto de crítica contra ela e, através dela, ao poder de
onde procede.
Relembra-se
então o processo grego da evolução educacional: a oposição entre a
educação-de-educar e a educação-de-instruir, a passagem da aprendizagem
coletiva para o ensino particular, o controle do Estado. Inicialmente existe
difusa no meio social; mais adiante, especializa-se sob a égide da escola, porém
a escola particular do mestre avulso ainda é uma extensão da sociedade civil; e
posteriormente, a educação escolar cai nas mãos do Estado, que, quando
autoritário e classista, exerce a educação para o controle da sociedade civil,
da comunidade de todos.
Mas, assim
como a vida é maior que a forma, a educação é maior que o controle formal sobre
a educação. Por toda parte as classes subalternas aprenderam a criar e recriar
uma cultura de classe – mesmo quando aproveitando muitos elementos dominantes
que lhes foram impostos como idéias ou
práticas – e também formas próprias de educação do povo. As oficinas de que
falei aqui e ali são um exemplo que vem da antigüidade até nossos dias. Mas
podem não ser o melhor exemplo. Os que na verdade nas comunidades de subalternos
é a preservação de tipos de saber comunitários de sua transferência de uma
geração para outra.
Construíram
estilos e tecnologias rústicas dirigidos aos seus usos do cotidiano. Inventaram
rituais sagrados e profanos. Tudo isso a que se dá o nome de “Cultura Popular”,
e que às vezes se vê da academia como uma amontoado de coisas pitorescas, faz
parte de sistemas populares de vida e de representação da vida, e tem uma
lógica e densidade de que apenas levantamos o primeiro véu, depois de tantas
pesquisas.
Assim como
a educação do sistema dominante possui o valor político dos serviços que presta
aos que controlam, enquanto ensina desigualmente aos que recebem , assim também
as formas próprias de educação do povo servem a eles como redes de resistência
a uma plena invasão da educação e do saber “de fora da classe”. Os esforços dos
professores e diretores para que haja um maior intercâmbio entre a “escola” e a
“comunidade” resultam quase sempre em fracasso. Eles fazem assim porque tratam
a escola “do governo” como tratam suas outras agências: o posto de saúde, a delegacia,
a agência de bem-estar social. Tratam como locais para serviços de emergência
e, ao mesmo tempo, como postos invasores de um tipo de domínio de classe
indesejável.
A aparente “primitividade” do pobre contra
a invasão sobre ele da “modernidade” do senhor é um meio popular avançado de
lutar por manter e recriar uma identidade própria de subalterno (de índio, de
negro, de colonizado, de escravo, de camponês), de manter o seu próprio saber e
as suas próprias redes de comunicação.
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