A ESCOLA COMO OBJETO NOS ANOS 1940: EXPANSÃO DO SISTEMA DE FORMAÇÃO DE
PROFESSORES PRIMÁRIOS NO DISTRITO FEDERAL
Fábio Souza Lima
Este
trabalho tem a intenção de traçar relações entre as políticas públicas do Distrito
Federal dos anos 1940 - 1950 e o crescimento da rede pública de ensino à luz de
alguns textos apresentados durante o curso Avaliação
dos Sistemas Educacionais, ministrado pela Profª Drª. Mariane Koslinski, no
curso de mestrado do PPGE/ UFRJ - 2014. Assim, lançaremos mão de temas tratados
como “a escola como objeto de estudo” e “Equidade e Eficácia”. Para tal,
selecionamos os autores Creso Franco (2007), Maria Alice Nogueira (1995), James
S. Coleman (2008) e Simon Schwartzman (2005) cujas conexões com o nosso estudo
puderam ser aproveitadas.
A
ESCOLA COMO OBJETO: EQUIDADE E EFICÁCIA DIANTE DO NOSSO PROJETO DE ESTUDOS
A Escola
Normal Carmela Dutra (ENCD) é a primeira escola normal criada no Distrito
Federal (atual Rio de Janeiro) no ano de 1946. O seu modelo foi o renomado
Instituto de Educação, pensado e criado por Anísio Teixeira e Fernando de
Azevedo no ano de 1932. A ENCD esteve submetida ao Instituto no período que vai
desde a sua criação até o ano de 1953, quando então conquistou autonomia
administrativa e pedagógica. O surgimento da referida escola é um marco na
expansão e consolidação dos valores republicanos e capitalistas no Brasil, pois
foi por conta de sua criação, na então zona
suburbana remota[1], o bairro de Madureira, que as crianças do sertão carioca[2] puderam ser mais bem servidas de professoras dos
primeiros anos do ensino público e gratuito, oferecido pelo Estado.
Ao levarmos
em consideração o início deste resumo, podemos relacionar o nosso objeto à
crescente preocupação da sociologia com a escola
enquanto um objeto de estudo. A Escola Normal é a instituição que oferece para as
escolas primárias as “professorinhas”, que são consideradas o principal
elemento na divulgação de novos saberes e principal fator intra-escolar de
sucesso dos alunos (FRANCO, 2007).
Há também
dois outros pontos a relacionar ao nosso objeto de estudo: 1º) o surgimento das
avaliações institucionais; 2º) o forte processo de escolarização do pós-segunda
guerra, conforme aponta Maria Alice Nogueira:
Mas uma segunda razão – desta vez exógena à
sociologia – é responsável pelo lugar importante ocupado na sociologia da
educação do pós-guerra pela relação educação/classes sociais. Refiro-me aqui à
forte expansão da escolarização (sobretudo de 2º e 3º graus) que se seguiu à II
Guerra Mundial, e a que já se convencionou denominar de “explosão escolar”. É
que esse movimento histórico de massificação do ensino fez emergir todo um
debate acerca das desigualdades educacionais em relação às disparidades entre
os grupos sociais (NOGUEIRA, 1995: p. 49)
O trabalho,
intitulado As normalistas chegam ao
subúrbio – A história da Escola Normal Carmela Dutra: da criação até a
autonomia administrativa (1946 – 1953) nos pareceu, desde o princípio,
poder ser tratado sob dois aspectos: em uma proposta, as políticas públicas e a
situação econômica do país tornar-se-iam mais interessantes ao focarmos a macro
história desta instituição, relevando a importância da difusão de novos valores
em uma nação de pensamento reconhecidamente rural. Em outra proposta, diante da
pesquisa previamente realizada e do contato que tivemos com os primeiros alunos
desta escola, realizamos entrevistas que expuseram o cotidiano da primeira
escola normal criada fora da Tijuca. Isto é, fora daquele eixo de ação e
pensamento econômico, político e social da classe média.
Uma escola
próxima ao meio rural, com as suas idiossincrasias que puderam ser revisitadas
pela micro história das memórias das alunas que experimentaram pela primeira
vez a oportunidade de serem estudantes normalistas. Contudo, alunas normalistas
do subúrbio, o que, a princípio, deveria diferi-las radicalmente das alunas da
Tijuca, um reconhecido reduto da classe média carioca.
Apesar de a
Escola ser construída em uma zona remota, tendo como intenção atingir a
população local, o perfil dos primeiros alunos é em grande parte de jovens
oriundos de escolas de prestígio, como o Pedro II. Além disso, a idade dos alunos
no momento da inscrição demonstra que todos já haviam passado da idade regular
típica para o início do ensino médio (15 a 16 anos). A partir daí, parece-nos
que as autoridades públicas não avaliaram o possível interesse de alunos que
não tiveram a chance de entrar em momento adequado no sistema de ensino de
formação de professores.
Além disso,
consideramos que vinte por cento das mães declararam ter uma profissão (que não
necessariamente implica em uma formação específica) que as diferenciasse do
trabalho doméstico. Na década de 1940, precisamos isso como exceção, posto que
o índice geral de analfabetismo de jovens de 15 anos de idade chegava a 65%
neste período (LEITE, 2010).
Entretanto, ficamos
surpresos ao encontrarmos indícios de uma política de equidade já nestes anos.
Consideramos como equidade o que Creso Franco apontou no em seu artigo Qualidade e Equidade em educação:
reconsiderando o significado de “fatores intra-escolares” (2007).
O
conceito de eqüidade intraescolar não deve ser considerado de modo independente
do conceito de eficácia. O cenário mais positivo ocorre quando as
características associadas à eqüidade intraescolar também estão associadas à
eficácia escolar. Neste caso, um mesmo conjunto de práticas escolares atua,
concomitantemente, no sentido de aumentar o desempenho médio das escolas e de
promover distribuição mais equânime do desempenho escolar dos alunos que
freqüentam as mesmas unidades escolares. Já o mesmo não ocorre quando uma
característica que modera o efeito da origem social no desempenho escolar está
associada a baixo desempenho escolar dos alunos, pois não faz sentido
considerar como pró-eqüidade prática educativa que está associada a baixo
desempenho escolar. Finalmente, faz-se necessário considerar a situação em que
as mesmas políticas e práticas escolares estão associadas, simultaneamente, ao
aumento da eficácia escolar e à diminuição da eqüidade intraescolar (FRANCO,
2007: p. 281).
É
importante ressaltar que quanto Franco aponta que tal política busca promover a
distribuição mais equânime do desempenho escolar dos alunos, consideramos o
caso da ENCD ser submetida diretamente como uma das escolas do Instituto de
Educação do Distrito Federal. E que uma proposta de nivelamento, como trouxemos
na citação abaixo, parte de um princípio de pretensão das autoridades públicas
de equalizar a formação de professores, seja na Tijuca, seja na zona suburbana
remota: Madureira.
RESOLUÇÃO Nº 14
Estabelece um curso de admissão à
1ª série da Escola Normal Carmela Dutra e dá outras providências.
O Secretário Geral de Educação e
Cultura, considerando que a Escola Normal Carmela Dutra, em Madureira, criada
pelo Decreto-lei nº 8.546, de 22 de junho de 1946, surgiu com a finalidade
precípua de atender ao evolutivo número da população e consequente amplitude do
quadro fe professores primários: (...) Considerando que nos primeiros exames
foram inabilitados todos os que aos mesmos recorreram, e, nos segundos, apenas
saíram aprovados trinta candidatos; Considerando que o novo estabelecimento
educativo beneficiará, principalmente os estudantes que habitam a zona rural,
os quais, por esse motivo não mais terão necessidade de se locomoverem daquela
zona para a zona urbana, porque já contam com mais um educandário no gênero;
(...) Considerado que se não deve deixar arrefecer o interesse, o gosto, o
entusiasmo dos que já se submeteram a dois rigorosos concursos, para o ingresso
na mesma Escola; Resolve: Art. 1º - Estabelece junto à Escola Normal Carmela
Dutra, em Madureira, um Curso de Admissão, do nível secundário (DOU, 8 de abril
de 1947, Disponível em <jusbrasil.com.br>. Acessado em 4 de junho de
2014).
Neste caso,
a ação equalizadora do Governo buscava eliminar um evento acontecido no
primeiro concurso para a ENCD: nenhum candidato foi aprovado. Evidentemente que
a ação neste caso, como propõe também o texto de Franco (2007) é uma ação de
cunho socioeconômico, isto é, buscando atender, como diz o texto da resolução,
atender a população Rural. Neste caso, entretanto, com a criação de um Curso de
Admissão, que naturalmente precedia uma Prova de Admissão, o estudo e a ação do
Governo parece ter sido mal dimensionada, o que atinge diretamente o que Franco
apontou como eficácia escolar. No ano
seguinte, novamente o concurso para novos alunos da ENCD aprovou uma quantidade
de 0%. Mesmo assim, aberto novo concurso, desta vez apenas 11 alunos passaram.
Devemos considerar esses números diante do que a própria resolução apontou: “a
finalidade precípua de atender o evolutivo número da população” (DOU, 8 de
abril de 1947, Disponível em <jusbrasil.com.br>. Acessado em 4 de junho
de 2014).
MUDANÇA
A PARTIR DA ESCOLA: SOBRE A NECESSIDADE DE EXPANSÃO DA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS
NO INÍCIO DO SÉCULO XX
A
Revolução de 1930 é considerada um marco histórico de mudança política,
econômica e social do Brasil. As oligarquias que pressionaram o antigo Império
e mantiveram na Primeira República as rédeas do poder nas mãos de parlamentares
correligionários, perderam o espaço político das decisões. Surgiram daí,
propostas que visavam novas bases políticas, o que provocou uma mudança radical
no eixo econômico do rural para o urbano, e a construção de cidadãos modernos,
ligados as inovações das sociedades industriais.
Assim,
como podemos perceber, adotamos neste estudo o que Parsons identificou como
“explicação da gênese e do desenvolvimento da escolarização pelo aumento da
complexidade da divisão do trabalho e do patrimônio cultural da sociedade”
(apud Nogueira, 1995: p. 47). À época, condizente com o que aponta a autora,
notamos que a crença de que tais mudanças deveriam ser fundamentadas na escola,
levando o governo do Distrito Federal a sugerir a expansão da rede de formação
de professores primários para que estes, após chegarem aos rincões cariocas,
levassem um novo pensamento e cultural.
Entretanto,
devemos ressaltar que a imagem construída pelo brasileiro de si mesmo passava
pela indolência, pela ignorância e pela sujeira. Personagens como Macunaíma, de
Mário de Andrade ou Jeca Tatú, de Monteiro Lobato, repetiam em suas falas a
preguiça em trabalhar e habitar as cidades urbanizadas que, aos poucos,
começavam a nascer, frutos de uma política de industrialização iniciada por
Getúlio Vargas.
Uma
das imagens da nação frequentemente avocadas referia-se a uma visão pessimista
do país em decorrência de sua formação histórica e cultural defeituosa,
acionada pela compreensão de que a miscigenação que no Brasil se realizou dera
origem a uma raça, degenerada, analfabeta, repleta de vício, doente e
comprometida pelos efeitos do clima tropical. A esse quadro desolador,
associou-se a falta de regras e de moral que marcou, de forma insofismável, o
povoamento do país (CAMARA, 2010: p. 123)
Lobato,
em 1914, referiu-se pela primeira vez a figura do caboclo ao citá-lo como
“espécie de homem baldio, seminômade, inadaptável à civilização” (1994: p. 161).
Também afirmava que, quanto mais o progresso chegava perto dele, o “bicho” se
afastava por não querer adaptar-se. O então presidenciável Ruy Barbosa, em
1919, usava ainda em seu discurso os termos “símbolo de preguiça e fatalismo,
de sonolência e imprevisão, de esterilidade e tristeza, de subserviência e
embotamento[3]”, para referir-se aos que,
aos moldes de Jeca Tatú, não embarcavam nos ideais de modernidade.
Quatro
anos após a publicação de Urupês, Lobato lança outra coletânea de contos, com o
título homônimo ao que havia consagrado o caboclo brasileiro: Problema Vital. Em tal obra, já sob as
leituras de Belisário Pena e Arthur Neiva (PALMA, 2003), Lobato começa a
redimir o “fazedor de sapezeiros[4]”, atribuindo-lhe ignorância
e doenças, verdadeiras origens de sua apatia, desleixo e prostração, que
pareciam ser suas características intrínsecas.
Figura 2 - Almanaque do Biotônico, 1935, p. 4.
Ilustração de J. U. Campos. Apud GOMES (2006).
A
figura negligente da própria vida encontrava a sua saída para uma existência
melhor na campanha fervorosa adotada por seu idealizador à favor da saúde. Era
o primeiro entrave ao projeto de nação moderna sendo identificado. A solução
sanitarista passou então a ser a tônica das discussões que levaram à escola, os
procedimentos higiênicos como matéria obrigatória para evitar doenças como a
acilostomose, malária, doença de chagas, entre outras. O segundo entrave, então,
aparecia na época: a taxa de analfabetismo no Brasil chegava aos 65% para a
população de 15 anos de idade ou mais[5],
taxa esta que, ironicamente coincidia com a expressão de Lobato: “Um país com
dois terços de seu povo ocupados em pôr ovos alheios” (LEITE, 2010: p. 183).
A
crença do período histórico abordado consistia em mudar essa situação a partir da
escola (apud Nogueira, 1995), e fazer as crianças chegarem as escolas,
significava construir mais escolas. Além disso, fazê-las funcionar, por sua
vez, significava reorganizar os aparelhos escolares e formar mais professores.
Nas palavras do então Ministro da Educação e Saúde (1946), Ernesto de Souza
Campos, o dado que realmente importava à expansão do sistema educacional
primário era o da quantidade de crianças na escola. Segundo o Ministro, o IBGE
aponta que 1944, a situação do Brasil era:
População
total (Previsão do I.B.G.E.) ............................................44.781.000
Crianças
de 7 a 11 (taxa de 12,5%)
...................................................5.597.625
Matrícula
Geral
..................................................................................3.309.959
Deficit
escolar (crianças sem escolas)
...............................................2.287.666
(...)
Matrícula
Geral do Ensino Primário
1942....................................................................................................3.340.952
1943....................................................................................................3.291.420
1944....................................................................................................3.309.959
(ENTREVISTA
DO MINISTRO DA EDUCAÇÃO E SAÚDE SOBRE A SITUAÇÃO DO ENSINO PRIMÁRIO, 1946: p.
497)
E,
segundo o próprio Ministro, em entrevistas, a disposição do Governo era de
dirimir esses números a qualquer custo:
O
plano que o I.N.E.P. elaborou e que será executado imediatamente prevê a
construção de escolas disseminadas por todos os Estados. Serão construídas
ainda este ano. E para mostrar a simplicidade de que se revestirá o nosso
prédio escolar citarei que será feito de tijolo, de adobe, de madeira e, se
necessário for, até de pau a pique. Usaremos na cobertura, por exemplo, o
material mais adequado pelo preço e pela facilidade de obtenção: telha,
eternite, ou palha e sapê. O essencial é fazer escolas para atender à população
escolar.
Porque,
continuou o Sr. Ministro, o interesse do Governo é dar ao Brasil a escola do
povo, a escola popular, adaptada às condições brasileiras (ENTREVISTA DO
MINISTRO DA EDUCAÇÃO E SAÚDE SOBRE A SITUAÇÃO DO ENSINO PRIMÁRIO, 1946: p.
493).
Segundo
o que identificamos em Young (apud Nogueira, 1995), duas das principais
questões que marcam o interesse de pesquisadores sobre esse contexto histórico,
também não passaram despercebido por nós:
a)
A visão da educação como fator de crescimento e
de desenvolvimento social;
b)
Os importantes investimentos feitos pelos
governos na expansão dos sistemas de ensino; (NOGUEIRA, 1995: p. 49)
Observamos
uma proposta absolutamente diferente dos resultados encontrados por Coleman em
sua pesquisa realizada algumas décadas mais tarde. Para este autor, as
inferências do trabalho realizado resultaram em um fato que:
Então, para quase todos os grupos de minorias e,
mais particularmente, para a minoria negra, as escolas não dão nenhuma
oportunidade para eles superarem essa deficiência inicial. Na verdade, eles se
distanciam mais e mais da maioria branca, no desenvolvimento de algumas
habilidades que são críticas para viver e participar integralmente da sociedade
moderna. As escolas não conseguem superar qualquer combinação de fatores não
escolares – pobreza, atitudes da comunidade e baixo nível educacional dos pais
-, que coloca as crianças dos grupos de minorias em desvantagem em habilidades
verbais e não-verbais, quando elas entram na 1ª série (COLEMAN, 2008: p.28)
No
entanto, mesmo considerando a escola como a “caixa preta” que comenta o autor,
e sem podermos precisar exatamente onde o quando houve erros e acertos neste
processo de inculcação de novos valores, percebemos que os resultados deste
investimento podem ser vistos nos dias de hoje. Daí então, nosso interesse se
voltou para a investigação de como esse processo seria desenvolvido diante da
situação em que a educação brasileira se mostrava.
Zombando
do passado, as escolas imperiais foram lidas, nos anos finais do século XIX,
sob o signo do atraso, da precariedade, da sujeira, da escassez, e do “mofo”.
Mofadas e superadas estariam as ideias e as práticas pedagógicas – a
memorização dos saberes, a tabuada cantada, a palmatória, os castigos físicos
etc. -, a má formação ou a ausência de formação especializada, o tradicionalismo
do velho mestre-escola. Casas de escolas foram identificadas a pocilgas,
pardieiros, estalagens, escolas de improviso – impróprias, pobres, incompletas,
ineficazes (SCHUELER & MAGALDI, 2008: p. 35).
Em
1927, segundo artigo da Doutora em Educação Sonia Camara (2004), o professor Deodato
Moraes apresentava sua tese “A Nova Escola”, na I Conferência Nacional de
Educação, realizada na Associação Brasileira de Educação, em que “delineava os
princípios científicos e práticos do trabalho, da profissionalização e da saúde
como parâmetros a partir dos quais a escola deveria se organizar”.
A
lei biogenética, segundo a qual a criança deve ser antes um bom animal para ser
mais tarde um bom civilizado, é a pedra angular da Escola Nova. Que importam os
métodos, processos, livros e aparelhagens ótimos, quando a matéria-prima não
está em condições de ser preparada. Ninguém pode ensinar uma criança doente.
Saúde em primeiro lugar e, depois, sabedoria. (...) A Escola Nova é, assim, a
Escola da Saúde (MORAES, 1997, p. 615 Apud CAMARA, 2004, p.159).
Percebemos,
neste trecho, aquilo que é apontado por Petitat com relação à função básica da
escola primária: “inculcar-lhe um conjunto de valores e normas sociais
garantidores da integração social” (apud Nogueira, 1995: p. 45). Evidentemente,
para isso, a figura da educadora primária se fez imprescindível.
Também
em 1927, Fernando de Azevedo assume a Direção Geral da Instrução Pública do
Distrito Federal. E, junto com ele, uma nova proposta de escola baseada no
estudo de Deodato Moraes se coaduna com as perspectivas crescentes para a
modernização. Para tal, a escola precisava de funcionários concursados e de
vencimentos equiparados, bem como o país precisava de crianças com uma nova
moral, novos costumes e valores, com uma renovada disposição para o trabalho. A
escola, aos moldes do que serviu para os países europeus em industrialização,
tomava o mesmo rumo no Brasil, com o acréscimo apenas da grande preocupação
higienista que caracterizou o período.
Fomentar
um projeto que conseguisse extirpar do cenário carioca os males do seu atraso,
identificados com o analfabetismo e a doença, significava a possibilidade de o
Estado estabelecer as bases para promover o ajustamento e a inserção da capital
e, por conseguinte, do país à ordem capitalista internacional fomentando e
potencializando progressos técnicos e científicos na edificação de uma nova
ideia de civilização. Entre as formulações apresentadas, o projeto de reforma
previa uma ampla reestruturação do ensino, inspirando-se no propósito de
atribuir à escola uma tarefa “social” e “nacional”, desenvolvendo para isto a
sua renovação interior a fim de adequar o ensino à criança (CAMARA, 2004: p.
162).
As
disciplinas para os primeiros anos de ensino passaram a ser compostas em grande
parte por componentes voltados para a higiene pessoal, a partir dos Programas para as escolas primárias,
publicado em 1929 (CAMARA, 2004). O novo projeto de cidadão brasileiro ligou
diretamente a questão da boa saúde com o alto rendimento no trabalho e civismo
patriótico, tendo isso tudo a escola como a sua mais genuína amálgama.
O
processo revolucionário de 1930, em que Getúlio Vargas assume o poder do
governo provisório, acaba por criar as condições políticas ideais para o avanço
de intelectuais que pensavam como Deodato Morais e Fernando de Azevedo.
Segundo
a Doutora Libânia Xavier, em 1931, Francisco Campos assume o recém criado
Ministério da Educação e Saúde, convocando intelectuais e profissionais da área
para a IV Conferência Nacional de Educação, que aconteceria no mesmo ano, “sob
os auspícios do Governo” (2002: p. 18). O evento apresentava como marca a
discussão de um projeto de educação para o país, concentrando-se na Educação
Primária, posto que o Governo já havia publicado as bases da Educação Secundária
e Superior.
Durante
o Congresso, o jornalista Nóbrega da Cunha pratica uma estratégia que visa
garantir que o grupo de intelectuais identificados com a renovação educacional
do país seja o único a ter voz no governo provisório de Vargas.
Utilizando
como último recurso um requerimento encaminhado à mesa e à Assembleia da IV
CNE, Nóbrega da Cunha conseguiu obter de seu Presidente, Fernando Magalhães, a
incumbência de redigir um manifesto que servisse
de base para o governo e de tema para o Congresso técnico. Em seguida, ele
transferiu essa incumbência para Fernando de Azevedo, que deveria aceitá-la em
nome do Governo, da imprensa e do povo (XAVIER,
2002: p.21).
Podemos
concluir que, havia interesses em manter o novo projeto de ensino como um
projeto laico, distante da antiga proposta religiosa da Igreja Católica, como
aponta Schwartzman:
O jogo de interesses individuais, dos
contratualistas de antes e de hoje, não lhe parecia suficiente para manter a
sociedade coesa. Era necessário, além disso, preservar e transmitir a cultura e
os valores, que no passado havia sido o papel da religião, e que , nas sociedades
modernas, deveria ser função dos sistemas educacionais (SCHWARTZMAN, 2005: pp.
15-16)
Ainda
em 1931, Anísio Teixeira e Carneiro Leão assumem os cargos da presidência da
Associação Brasileira de Educação. No ano seguinte, Lourenço Filho assume a direção
dos trabalhos para a construção da V CNE, enfraquecendo o grupo católico que
até então, controlava as duas entidades.
O
“olho do furacão” desta disputa era o Ensino Primário. Já se acreditava que a
inculcação dos mais profundos valores de um indivíduo acontecia nos primeiros
anos de sua socialização e que o Estado figurava como a principal instituição a
realizar este processo. Daí a importância de controlar dois fatores importantes.
O
primeiro refere-se ao que os alunos precisam aprender, embora se destaque, mais
uma vez em opinião contrária, o estudo de Coleman (2008), de que os currículos
tem pouco poder de variação no desempenho do aluno. Naturalmente, acreditava-se
que os problemas de saúde e de adequação do povo a uma nova realidade
capitalista industrial, além da desconstrução da visão que os brasileiros
faziam de si mesmos, como acreditavam na época, deveria ser desfeita pela
educação. E assim, com as novas normalistas do ENCD, a Educação Primária chegava
às escolas com um novo currículo que continua por exemplo:
PRIMEIRO
ANO
Hábitos
de higiene bucal. Uso da escova de dente.
Higiene
dos olhos, ouvidos, nariz, das mãos e dos pés.
Hábitos
de higiene da pele, banhos, fricções, banhos de sol.
Higiene
da alimentação. Escolha de alimentos. Como mastigar engolir;
hábitos
de temperança.
Hábitos
de regularização das principais funções de excreção (urinária e intestinal).
Hábitos higiênicos no uso dos aparelhos sanitários.
Higiene
do vestuário.
Hábitos
higiênicos relativos ao sono.
SEGUNDO
ANO
Perigos
dos animais domésticos. Doenças transmitidas pelos mosquitos,
moscas,
pulgas. Meios de exterminá-los.
Asseio
da habitação.
Hábitos
higiênicos.
TERCEIRO
ANO
Meios
de evitar a tuberculose.
Alimentos
em geral – Sua utilização na ração normal. Sua importância
no
crescimento. Pesagem dos alunos.
A
febre amarela e o tifo – profilaxia.
Saneamento
da cidade do Rio de Janeiro. O Rio antigo e o moderno.
Hábitos
higiênicos.
QUARTO
ANO
Bebidas
estimulantes.
Alcoolismo
– agudo e crônico. Malefícios para o indivíduo, para a
família
e para a sociedade.
O
leite e seu papel segundo a idade – sub-nutrição.
Profilaxia
das principais moléstias transmitidas por insetos. Impaludismo,
ancilostomose.
Verminoses.
Modos de propagação e meios de combatê-las.
Higiene
da visão.
Moléstias
contagiosas mais comuns. Hábitos para evitá-las.
Princípios
de higiene mental.
QUINTO
ANO
Puericultura.
Higiene
do recém-nascido. O quarto da criança, o vestuário, o asseio
corporal,
os passeios.
Puericultura.
Higiene
do recém-nascido. O quarto da criança, o vestuário, o asseio
corporal,
os passeios.
Alimentação
da criança doente.
Desenvolvimento
normal da criança: o peso e a estatura; a pele e
as
mucosas; a musculatura; o desenvolvimento físico; o sono; as
fontanelas;
os dentes; a temperatura; o trabalho digestivo.
Higiene
dos olhos, da boca, dos ouvidos, do nariz, da garganta e
dos
órgãos sexuais da criança.
Higiene
mental das crianças (Programmas,
1929, pp. 56-57 apud CAMARA, 2004: pp. 168-169).
Contudo,
o controle deveria contemplar não apenas a oferta de disciplinas nas escolas
primárias e o que as crianças deveriam aprender, mas também a alma das
professoras que estavam sendo formadas para lecionar no ensino primário.
Embora
muitos políticos e intelectuais concordassem que não possuíamos ainda uma nação
e um povo, muitos também consideravam que um dos caminhos seguros para atingir
tal meta era o dos bancos escolares, a começar pela instrução primária. Foi essa
certeza que tornou a figura do professor primário uma chave da escola
republicana. Como ela era, por excelência um local de aprendizado não só de
conhecimentos, mas de valores cívicos e morais necessários à regeneração
(lenta, é verdade) de toda a sociedade, o professor encarnava esse objetivo
transformador. Ele precisava ganhar prestígio e reconhecimento social para que
então pudesse ter autoridade em sua missão. Justamente por isso, o professor,
além de possuir saber técnico para o exercício do magistério, tinha que ser um
modelo de virtude (...) As professoras primárias eram definidas como
verdadeiras “construtoras da nação”, e a profissional modelo era aquela formada
nas escolas normais (GOMES, 2002: pp. 404-405).
CONCLUSÕES
Ao
rever nossa pesquisa com o uso dos autores que citamos, concluímos que
realmente não havia uma um trabalho de pesquisa e entendimento dos fatores
escolares que pudessem gerar o insucesso escolar. Isso porque o número de
crianças não atendidas no Brasil era muito grande na década de 1940. A escola,
por mais que já fosse apontada como redentora de uma série de mazelas sociais,
não era estudada em seu interior, isto é, não era estudada como objeto
sociológico ou científico.
Ainda
não se comenta academicamente sobre se o crescimento sem limites da
escolaridade formal e das exigências educacionais podem ou não trazer
benefícios que frequentemente as pessoas achavam que seria natural
(SCHWARTZMAN, 2005). Mas pelo contrário, as pessoas se perguntavam se a escola
valia a pena:
A escola pra nós é o mesmo que um inferno só
lembramos que temo (sic) de ficar ali sentado o dia inteiro sem poder falar nem
(cuspir) [...] nem poder conversar com os companheiros qual o aluno gosta
[...]. Nós vamos porque a nicissidade (sic) nos obriga para mais tarde podermos
governar a nossa vida para pegarmos no trabalho leve como ser presidente da
república, deputados, senadores, escritor, professores, já não fosse a
nicissidade (sic) que nos obrigasse nós ficávamos em casa quando fosse tempo de
papagaio ficávamos soltando-o no tempo de balão corríamos atrás dele no tempo
de bola de gude íamo (sic) para a rua jogar (Apud CAMARA, 2010: p. 461)
BIBLIGRAFIA
CAMARA, Sônia. A
Constituição dos Saberes Escolares e as Representações de Infância na Reforma
Fernando de Azevedo. Revista Brasileira de História da Educação, n. 8,
julho/dezembro de 2004.
CAMARA, Sônia. Sob a Guarda da República: a infância
menorizada no Rio de Janeiro da década de 1920. Rio de Janeiro, Quarter, 2010.
COLEMAN, James S. Desempenho nas escolas
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Escolar: origens e trajetórias. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. p. 26 – 32.
CORRÊA, Armando Magalhães. O sertão carioca. Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, 1936.
ENTREVISTA DO MINISTRO DA EDUCAÇÃO E
SAÚDE SOBRE A SITUAÇÃO DO ENSINO PRIMÁRIO.
Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Rio de Janeiro, Vol. VII,
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FRANCO, Creso. “Qualidade e equidade em
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Acesso no dia 7 de março de 2014.
[1] A região de Madureira, mais
especificamente a Estrada Marechal Rangel onde foi instalada a ENCD, era
classificada como “2ª Zona Suburbana Remota e de difícil acesso” pelo
Secretário Geral de Educação e Cultura, conforme mostrou as publicações de variados
jornais, dentre eles Correio da Manhã, 29 de dezembro de 1949, p. 12 e o Diário
de notícias, 30 de dezembro de 1949 pp.3-5. Disponível em <http://hemerotecadigital.bn.br/>.
Acessado em 14 de março de 2014.
[2] A palavra “Sertão” significa
região do interior, longe da costa e das povoações. Utilizamos neste trabalho a
expressão “Sertão Carioca”, com base no livro de título homônimo de autoria de Armando
Magalhães Correa, de 1936.
[3] Barbosa, Rui. A Questão Social e
Política no Brasil. (Conferência pronunciada no Teatro Lírico, do Rio de
Janeiro, a 20 de março de 1919). Ed. anotada. Intr. de Evaristo do Moraes
Filho. São Paulo/Rio de Janeiro: LTr/Fundação Casa de Rui Barbosa, 1983.
[4] Sapezal é o lugar onde e
concentram muitos sapés, planta de origem gramínea. Contudo, o termo é usado
aqui com o sentido de terra estéril, deserto, onde nada cresce ou é
aproveitado.
[5]
INEP.
Mapa do analfabetismo no Brasil.
Disponível em < http://www.publicacoes.inep.gov.br/arquivos/%7B3D805070-D9D0-42DC-97AC-5524E567FC02%7D_MAPA%20DO%20ANALFABETISMO%20NO%20BRASIL.pdf>
Acesso no dia 7 de março de 2014.
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