‘O FACTO É
QUE EXISTIMOS’
A)
DA
CORPOREIDADE. Magalhães Inicia sua argumentação dizendo que parte do
princípio dos fatos reconhecidos por todos os filósofos das mais contrárias
escolas, e por todos aqueles que possuem qualquer conhecimento geral das coisas
da natureza. Desta forma, inicia da discussão sobre a verdade dizendo que se
deixamos de reconhecê-la, é por falta de atenção.O Universo sensível, onde
habitamos, é uma reverberação do universo intelectual, que existe no pensamento
de Deus, e que se corporiza para nós pelo reflexo das nossas intuições e
sensações. Nossas sensações são, desta forma, sinais do pensamento de Deus.
Nossa corporeidade, sinal de sua vontade.
B)
CAUSA DA
PERMANÊNCIA NA ORDEM DAS PERCEPÇÕES. Permanecemos, enquanto homens, na
ordem das percepções devido a nossa inteligência limitada. Por conta disso
também criamos, segundo o autor, universos que ocupam espaços, mas que, porém,
duram o tempo de nossos sonhos. Ao contrário disso Deus é puro pensamento, nos
mantendo vivos.
C)
RESPOSTA A
UMA OBSERVAÇÃO DE LEIBNIZ. Ao citar Locke, também aposta que não é impossível,
metafisicamente falando, que haja um sonho seguido e durável, como a vida de um
homem; mas é uma coisa tão contrária à razão, como seria a ficção de um livro
de se formasse por acaso, atirando-se confusamente os caracteres de uma
tipografia. De resto, é verdade também que, contanto se liguem os fenômenos,
pouco importa lhes chamemos de sonhos ou não; pois a experiência mostra que não
nos iludimos nas medidas que tomamos em relação a esses fenômenos.
D)
PORQUE CRIOU
DEUS OS ESPÍRITOS. A inteligência divina seria a única e solitária
espectadora dos seus belos pensamentos, se não houvesse outras inteligências
que os percebessem, e onde eles se refletissem. Incompleta fora de sua obra, se
tendo Deus pensado a ordem social, e a virtude no meio de todos os contrastes,
e seres livres que a executassem, não desse a esses seres da sua inteligência
uma existência real, uma consciência própria, e uma verdadeira liberdade.
E)
O QUE
LIMITA O PODER DO HOMEM. O que limita nosso poder é o corpo animal, essa
imagem, esse complexo de fenômenos sensíveis, sujeito a leis necessárias,
independentes da nossa vontade, que demanda imperiosamente a atenção, e
involuntariamente se opõe às nossas determinações. O corpo não nos foi dado como
uma condição de saber e de querer, mas como uma sujeição que coarctasse esse
poder livre, de que abusaríamos, chamando-nos à vida prática.
F)
DA ORDEM
SOCIAL EXISTENTE. Se Deus tivesse criado seres que vivessem apenas na
bem-aventurança, apenas contemplando as maravilhas de seu criador, de que
serviria então o prêmio final? Se fossemos tão bons e belos, se vivêssemos
sempre felizes e sem aflições, qual seria o nosso mérito na consciência de nós
mesmos? Haveria assim liberdade?
G)
POSSIBILIDADE DE
QUALQUER OUTRA ORDEM SOCIAL. Desaparecendo todos os vícios e
todos os males humanos, os homens quereriam agir e pensar cada um ao seu jeito.
Seria a guerra de todos contra todos. Não haveria sociedade, uma guerra em
estado permanente, uma sociedade sem liberdade.
H)
CONVENIÊNCIA
DE UMA SOCIEDADE LIVRE. Ser um homem livre implica na possibilidade de sermos
virtuosos e sábios pelos nossos próprios esforços, e não um rebanho de
máquinas, obedecendo cegamente a uma vontade soberana.
I)
TUDO SE
COMPREENDE COM A LIBERDADE HUMANA. Com a inteligência, a liberdade, e
a vida futura compreendemos o homem, a ordem social, a virtude e o vício, o bem
e o mal; sem a inteligência, sem a liberdade, sem vida futura tudo é obscuro,
tudo incompreensível, tudo absurdo no homem, e na ordem social.
J)
CONCILIAÇÃO
DA LIBERDADE COM A PRECIÊNCIA DIVINA. Uns reconhecendo o livre arbítrio,
negam como incompatível a presciência divina. Outros, julgando impossível que
Deus ignore o que os homens têm de fazer, sacrificam a liberdade à omniscência
do Eterno. Outros enfim, admitindo ambas as coisas como certas, procuram
ajustar as duas verdades, sem, contudo, satisfazerem completamente.
K)
DEUS ESTÁ
PRESENTE À ORDEM SOCIAL. Ele não deixou entregue à mercê da vontade caprichosa
de alguns homens; ele previu tudo, e deixando toda a liberdade ao espírito
humano para pensar e determinar-se como quisesse, obrigou-o pela razão e pelo
corpo a conformar-se à ordem providencial dos seus infalíveis planos, para o
maior bem das suas criaturas, filhos da sua predileção, em quem reflete os seus
pensamentos. Ele saberá premiar a todos, segundo as suas obras, com uma justiça
igual à sabedoria sem fim que se patenteia em todas as coisas.
L)
MORALIDADE
DOS NOSSOS ATOS. A ignorância do que vai acontecer, após qualquer ato,
é o que nos dá inteira liberdade em nossos juízos. Não importa se já está
devidamente ‘escrito’ por Deus o futuro. O sentimento de que o que acontece é
efeito das decisões que tomamos, nos dá a sensação de liberdade.
M)
MOTIVO DAS
NOSSAS AÇÕES. Nada deixa de ter uma causa final. Se um ser não pode obrar
livremente sem ter consciência de si, sem o conhecimento do que pode e deve
fazer, essa liberdade, essa consciência, essa inteligência, inseparáveis, quer
altere, quer não altere a ordem das coisas, deve infalivelmente te um fim
previsto e certo. Se essa liberdade dá moralidade ao ato, essa moralidade não
pode ser inútil, sem mérito algum, sem servir para alguma coisa. Com efeito, a
consciência de todos os homens liga o prêmio ao mérito e à moralidade da ação
livre, e não condena o que obra sem inteligência e liberdade. Se assim julgam
naturalmente todos os homens em relação uns aos outros, e a todas as coisas,
assim devemos julgar de nós mesmos em relação a Deus; porque ele é a justiça
infalível, a verdade mesma, que nos faz pensar deste modo.
N)
REFUTAÇÃO
DA TEORIA DO INTERRESSE INDIVIDUAL. FIM MORAL DO HOMEM. O Homem é
muito superior à pintura que dele fazem, á mais fácil a virtude do que parece.
Essa moral repugnante dos Helvetius, essa pérfida política dos Maquiáveis, esse
abjeto despotismo dos Hobbes, são sátiras e sarcasmos à humanidade, e não
coisas que lhe convenham. Elas só servem para ridicularizar e embrutecer o
homem, deslustrar a virtude, entronizar o vício, e corromper os governos. Não é
nos hospitais, e nos pútrios cadáveres que se estuda a natureza humana; ela aí
se mostra em parte, mas enferma, corrupta, ou morta. O homem é antes um ente
social, do que individual. Desde o momento em que aparecemos neste mundo até
aquele em que o deixamos, a cada instante dependemos e necessitamos da
sociedade; nela vivemos, por ela e par ela nos instruímos; todos nela pensam, e
trabalham por nós e para nós; como nós por ela e para ela: a mesma razão nos
ilumina a todos; a nossa consciência é por assim dizer a consciência da sociedade;
e mais vezes a consultamos do que a nós mesmos. A vontade, o amor, a
inteligência, a paternidade, a amizade, a caridade, o heroísmo, as instituições
puras do bem, do belo, e do justo, todas as ciências, todas as artes belas,
todas as indústrias, a saúde e a enfermidade, tudo nos conduz à sociedade, ou
dela nos vem, como um fluxo e refluxo contínuo de um só elemento. O homem é um
ente moral, porque é social, e social, porque é moral.
O)
A VIRTUDE É
MAIS FÁCIL DO QUE PARECE. O autor de tudo nos indicou todos os nossos deveres
com cuidado incessante, e facilitou-nos com grande profusão todos os meios de
satisfazê-los. Deixando os apetites e desejos puramente animais, todos os
sentimentos morais, que já dependem de um conhecimento do espírito, e que sem
essa intuição não seriam sentimentos, nos levam aprazivelmente a sociedade à
prática da virtude, e nos abrem um vasto campo ao mérito, moderando-os pelo
conhecimento do bem, e combatendo os sentimentos do espírito, como sejam o
ódio, a cólera, e o desejo da vingança.
P)
SENTIMENTOS
MORAIS. Todos os belos sentimentos morais nos tiram de nós e nos
conduzem à sociedade, particularizando-a pela família, os conhecidos, os
cidadãos ilustres e beneméritos, e a pátria; e com o bem de todos nos regozijamos!
Se saímos destes sentimentos que particularizam as nossas afeições morais, e as
nossas simpatias; se entramos no domínio da inteligência pura; encontramos o
amor da verdade, o amor do justo, e o amor do belo, que nos fazem cidadãos do
mundo; e ainda mais nos esquecemos de nós mesmos e dos nossos interesses
individuais, procurando a verdade, o justo e o belo, na pátria e longe dela, em
todos os tempos, em todos os povos admirando sem interesse algum Homero,
Virgílio, Sócrates, Platão, Aristides, Epaminondas, Marco Aurélio, Rafael,
Miguel Ângelo e Washington.
Q)
O DEVER. Se a vida
do homem sobre a terra é um contínuo merecer; se é um contínuo cumprimento de
mil deveres morais, que não têm os animais. Se ele constantemente aperfeiçoa-se
na sociedade pelo conhecimento da verdade, e pela prática do bem, do belo e do
justo; esses deveres morais, e a sua própria natureza espiritual, lhe
afiançaram uma existência além da campa. É incompatível com a sabedoria, e a
infinita bondade divina, que um ente espiritual que tem deveres morais a
cumprir neste mundo, para complemento dos altos desígnios do seu criador, seja
inutilmente condena-o a tantos tormentos morais, a tantos sofrimentos físicos
pelos outros, e pelo seu corpo; e depois de alguns anos de dores, de
meditações, de trabalhos, de sacrifícios, de edificação e até do martírio, os
que cumpram, os bons e os maus, os justos e os injustos, os tiranos e as
vítimas, voltem todos a um mesmo nada.
R)
IMORTALIDADE
DA ALMA. A imortalidade da alma é garantida na consciência infinita
de Deus. Comédia horrível seria este mundo; uma ilusão sem causa este universo;
a existência humana uma zombaria do nada, e tudo mentira, se não houvesse um
Deus justo e bom! Os malvados teriam razão por um mero acaso; não haveria
verdade e justiça nem na terra, nem no céu! Tranqüilizemo-nos! O que pe absurdo
não pode ser verdade. Deus existe; e o espírito humano é imortal com a sua
consciência.
MAGALHÃES, D. J. G. de. Fatos do espírito humano. Petrópolis; Rio de Janeiro: Vozes: ABL, 2004.
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