Ana Paula da Rocha Serrano
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André Luis de Oliveira Maciel |
Andréia Lima Anselmo de Jesus
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Fábio Souza Corrêa Lima
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Marcelo de Souza
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Miguel Ângelo Ferreira
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Susana Orozco Morais
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“Quando queremos lembrar o que
aconteceu nos primeiros tempos da infância, confundimos muitas vezes o que se
ouviu dizer aos outros com as próprias lembranças...”
Goethe, Verdade e Poesia[1]
Das muitas semelhanças que os filmes Cabra Marcado pra Morrer, de Eduardo
Coutinho e Narradores de Javé, dirigido
por Eliane Caffé apresentam – o fato de
retratarem o Nordeste brasileiro; a proposta de ser também um documentário, baseando-se em uma história real; a
utilização de depoimentos dos envolvidos na história e a participação dessas
pessoas nos filmes – uma delas é o fato de ambos engendrarem uma discussão
acerca do "fazer do historiador", principalmente no que diz respeito
aos recursos da oralidade e da memória como fonte e objeto para o
desenvolvimento de um estudo histórico. Essa característica em particular será
o alvo das seguintes linhas do ensaio aqui apresentado, isto pois, são duas
películas produzidas em épocas distintas e que, apesar das diferenças de
produção e roteiro trazem à tona consciente ou inconscientemente nas
entrelinhas de suas histórias a discussão acerca da própria História.
O filme de Eduardo Coutinho relata a retomada da
produção de Cabra Marcado Para Morrer, originalmente um filme de ficção baseado
na história real de João Pedro Teixeira um líder da Liga Camponesa de Sapé
(Paraíba) assassinado em 1962, que começara a ser filmado em fevereiro de 1964,
mas teve sua produção interrompida com a instauração do regime militar em março
do mesmo ano e o cerco das forças policias ao engenho da Galiléia, local das
filmagens. Em 1981, dezessete anos depois, enquanto no país a reabertura
política começava a ser delineada, porém não definida, Coutinho, munido do
material que não havia se perdido com a ação militar, volta à Galiléia para
filmar na forma de um documentário o desenrolar dos fatos da produção que não
pudera terminar e também para reencontrar os personagem da película original.
Narradores de Javé trata-se de um filme de ficção
baseado em histórias reais de moradores de Gamaleira da Lapa, uma cidade do
interior do Nordeste, que haviam passado por uma inundação da cidade em que
viviam devido a construção de uma hidrelétrica. Eliane Caffé através da
narração de Zaquieu, personagem de Nelson Xavier, transporta essa trama para o
fictício Vale de Javé, que para evitar o "afogamento" da cidade
decide contar a partir das histórias do povoado a grande História de Javé, um
livro de caráter documental científico, o qual expressaria a importância de
Javé e conseqüentemente impediria a sua destruição pela hidrelétrica.
Os dois
filmes em questão enfocam, cada um a seu modo, o uso da memória e a valorização
da oralidade no relato histórico. Em Cabra Marcado para Morrer a volta de
Eduardo Coutinho à Galiléia passados muitos anos de sua primeira visita e o
reencontro com os agentes daquela história que ele inicialmente se propunha a
contar através da exibição do que restou da película original de 1964 – ponte
entre o cineasta e os camponeses – na praça local agregando novamente muitos dos que viveram na
Liga Camponesa do Sapé suscita uma resignifição do passado através da memória individual
das pessoas. Os documentos/monumentos que são esses fragmentos de imagem
instauram uma retomada dos processos históricos vividos camponeses na década de
1960 e Coutinho filma os depoimentos não em busca de uma verdade histórica, mas
da reconstrução da memória coletiva de um povo.
Segundo as palavras de Ecléa Bosi, “A lembrança é uma imagem construída pelos
materiais que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto de representações
que povoam nossa consciência atual. Por mais nítida que nos pareça a lembrança
de um fato antigo, ela não é a mesma imagem que experimentamos na infância,
porque nós não somos os mesmos de então e porque nossa percepção alterou-se e,
com ela, nossas idéias, nossos juízos de realidade e de valor. O simples fato
de lembrar o passado, no presente, exclui a identidade entre as imagens de um e
de outro, e propõe a sua diferença em termos de ponto de vista” (Idem, p.55)., e é interessante notar como a
atualização da memória com o passar dos anos é documentado em entrevistas como
a do (...) que fazia parte das Ligas no passado
e nega tudo o que viveu no seu depoimento posterior, pois é membro de uma
comunidade religiosa evangélica, expressando claramente uma configuração de sua
memória em função do seu presente e o depoimento de Maria Teixeira a mulher de
João Pedro, perseguida pela ditadura, morando em uma cidade afastada e vivendo
com uma outra identidade quando da chegada da equipe de filmagem. No início de
sua fala Maria ainda apresenta-se muito contida tolhida pela presença de seu
filho mais velho, somente quando está sozinha e depois de um certo tempo de
entrevista é que faz um relato mais contundente, inclusive, politicamente
posicionado.
No filme Narradores de Javé a
escritura da Grande História do Povo Javélico é
construída, no sentido literal do termo, a partir da memória dos seus
habitantes e também a tradição oral que desenvolveram, assim, Eliane Caffé
coloca em foco questões, as quais os historiadores há muito formulam e debatem
na esfera da epistemologia e metodologia em história. Assim como Coutinho em
Cabra Marcado Para Morrer, os usos da história oral são discutidos em uma
seqüência em que os moradores/personagens do filme dão seus depoimentos acerca
do impacto da inundação de suas casas. Tal seqüência é encaixada no filme como
um pequeno documentário e expressa, além do sofrimento com a perda material, a questão da perda de identidade a partir da ausência dos
lugares de memória, como uma das depoentes que fala do cemitério onde
seus parentes e seu passado estão e que iria se perder. Nesse contexto ainda
pode ser discutido, abordando outras vertentes do filme, o valor da preservação
ou não do patrimônio não material e cultural.
As resignificações da memória também são abordadas, uma vez que a
História do Vale de Javé apresenta diversas versões de acordo com a ótica de
quem as conta. Em determinada cena, várias pessoas se reúnem para tentar contar
a história do surgimento do Vale de Javé. Caso pudéssemos comparar essa reunião
com outra hipotética reunião, onde o recolhedor dos depoimentos conseguisse
criar uma versão consagrada da
história, teríamos em verdade um documento registrado, tal como queriam os
moradores de Javé. Contudo esse documento seria esquematizado e empobrecido no
sentido privilegiar o fim último de preservação física da cidade. Todas aquelas
dissonâncias, os conflitos, os olhares, as expressões faciais e os gestos que
temos no filme, seriam suprimidos no livro, seriam tratadas como digressões
inúteis, inconvenientes às escrituras de um documento “científico”. Sabendo que
mesmo os documentos escritos (“científicos”), são cobertos de interpretações
pessoais estereotipadas, inclusive no que diz respeito a criação de heróis como
são mostrados nas narrações individuais do filme, a diretora e o roteirista de
Narradores de Javé determinam-se por manter as diversidades dos depoimentos.
Afastam-se da unilateralidade de um documento “científico” e concentram-se num
desnível embevecedor, presente nos diferentes olhares sobre os fatos vividos
por pessoas que compartilharam a mesma época. Narradores de Javé expõe,
portanto, utilizando-se de um realismo reflexo e pluralista, a maior riqueza
encontrada na memória oral: o diverso de experiências.
Outra questão acerca do "fazer história" que também é abordada
os dois filmes é a relação entre a história "oficial" e a história
"não-oficial", se é que assim podem ser denominadas. Em Cabra Marcado
Para Morrer, trazer à luz os acontecimentos de 1964 – considerando aí os que
ocorreram no campo e foram ser filmados por Coutinho e os que dizem respeito às
filmagens que não puderam ser concluídas – e, além disso, sob a ótica de
campesinos organizados politicamente em torno das Ligas Camponesas é no mínimo
contestador. O cineasta vai a Galiléia documentar uma história e acaba por fazer
parte dela, então, elabora uma releitura de sua obra inicial e a concretiza
através de um documentário que utiliza a metalinguagem para fazer uma dupla
denúncia: a perseguição de trabalhadores rurais e a extirpação do direito de
liberdade de expressão, ambos norteados pela histeria ideológica da ditadura
militar no Brasil.
É, sem dúvida, e isso se pode apurar no início de Cabra Marcado, quando o
diretor fala sobre (...), uma subversão da história oficial e até então contada
pelos donos do poder, uma vez que, os agentes e enunciadores da
"verdade" histórica são os membros da Liga entrevistados no filme. A
discussão implícita, não busca apurar se os depoimentos são verdadeiros ou não,
mas sim contar uma outra versão de uma mesma história fazendo um jogo de
palavras e imagens com os depoimentos colhidos (história
"não-oficial") sempre claros e coerentes e as notícias de jornal que
apresentavam as Ligas como uma ameaça (história "oficial")
demonstrando o teor absurdo das matérias que acusavam os assentados de
conspiradores internacionais.
Essa divergência entre uma história “oficial” e história “não-oficial” é
retratada na película de Eliane Caffé na oposição tradição escrita versus
tradição oral. O vale de Javé iria ser inundado, pois sua população era iletrada,
entretanto a narrativa vai mostrando, e o personagem de Antônio Biá é
fundamental nessa trama, que a riqueza da comunidade estava justamente nas
histórias contadas por seu povo e que jamais poderia ser expressada em sua
totalidade enclausurada em um livro. Biá, responsável por escrever a História
de Javé, por ser o único que possui a “sapiência” das letras é uma figura
irreverente e irônica, mas ao mesmo tempo reveladora de um perfil do
historiador. Como é representado pelo personagem o historiador, ou aquele que é
autorizado a responder pelo passado na sociedade, também é um narrador na
história que se propõem a fazer, ou seja, sua voz está inscrita no documento
que produz indelevelmente e o que lhe cabe é assumir isso ou não, partindo do
princípio que não há neutralidade. A história de Javé conota o caráter
polifônico e não-linear da história, pois as possibilidades são múltiplas e as
versões também. O filme em questão caminha no sentido inverso as grandes
escolas históricas do século XIX subvertendo a hierarquia das fontes para a
ordem memória, através de depoimentos ® documento escrito. Na
tentativa de escrever a história “científica” de Javé que a engrandeceria e
contaria de forma definitiva de seu passado, a cidade acaba inundada por não
perceber sua própria identidade, mas na inundação essa identidade é resgatada e
o sentido de comunidade reafirmado na presença sempre constante do sino da
igreja que é levado junto com o povo para a nova localidade.
Este sino mostra-se como um objeto comum a todas as versões da história
do Vale de Javé. Desta forma, o sino da igrejinha, que todos se preocuparam em
resgatar antes da invasão das águas encontra-se incorporado às vidas de cada
pessoa daquela cidade. É um elo com o passado. O sino, nas palavras de Violette
Morin[2],
mostra-se um objeto biográfico. Um
Objeto que tem por obrigação e privilégio estar voltado ao uso cotidiano e ao
envelhecimento junto com a cidade, adequando-se às necessidades de criação de
uma identidade perante o país, repleto de experiências vividas individualmente
ou em grupo, repleto de uma natureza espiritual, onde sua perda não se daria
sem muita dor e lamentação. O referido objeto
biográfico, ao obrigar os narradores de Javé ao resgate de última hora,
mostra-se a todos como um objeto insubstituível.

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Bosi, Ecléia. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo, Companhia das
Letras, 1944. 10ª edição.
Bosi, Ecléia. O tempo vivo da memória. Ensaios de psicologia social. Ateliê
Editorial, São Paulo, Edição 2003.
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