REFLEXÕES SOBRE O MODELO HISTORIOGRÁFICO A SER ADOTADO
Resumo
Nossa
proposta é refletir sobre qual seria o modelo deverá ser adotado em um projeto
de pesquisa de pós-graduação. Para isso, devemos tecer considerações sobre o
nosso próprio perfil enquanto pesquisador, o perfil da linha de pesquisa
adotada, o perfil do orientador (a) escolhido (a) e os interesses que estão
envolvidos na formulação e desenvolvimento de tal estudo, tanto quanto os
anseios de determinada comunidade – escolar ou não – que poderá ser atingida
com a publicação do trabalho. Para isso, usaremos principalmente autores que
discutem os modelos historiográficos, como Cardoso (2011), Burke (1992) e
Vainfas (2011).
Palavras-chave:
História da
Educação, Historiografia, Educação, Produção Acadêmica.
SOBRE
O PRINCÍPIO CIENTÍFICO-FILOSÓFICO DA PESQUISA
Todo início de busca por algum conhecimento deveria
começar pelo princípio.
Essa frase pode parecer um pleonasmo à primeira vista, mas o saber, seja ele construído, descoberto
ou revelado, grande ou pequeno, completo ou fracionado, exige que aquele que
tem disposição de espírito para buscá-lo, tenha também o cuidado de revelar os
caminhos que percorreu para que os seus passos possam ser seguidos, comentados
e até contestados.
Ainda na primeira
década do século XX, quando iniciávamos o curso de história na Universidade
Federal Fluminense, jovens que éramos, bradávamos alto o tom da candura em cada
palavra que soltávamos. Lembramo-nos da primeira vez, quando ao encontrar uma
colega de classe pelos corredores da Academia afirmamos categoricamente que os
princípios da história residiam verdadeiramente na cultura. “– Ela influenciava
tudo”, apontávamos peremptoriamente, enquanto alguns colegas respondiam: “– É a
economia”, emendando seus argumentos de forma igualmente categórica. Essas
discussões continuaram frequentes até decidirmos, à época, adotar a economia e
a política como base de nossa forma de ver a realidade. O amadurecimento, no
entanto, juntamente com novas perspectivas, nos ofereceram outros
questionamentos sobre como enxergar o que considerávamos ser a Arkhé (ἀρχή), o
princípio de um saber real e da construção das relações humanas.
Reclamávamos
agora pelos corredores que nos eram apresentadas poucas variações das formas de
ver o mundo ou em outras palavras dizíamos que as ideias eram sempre as mesmas
para examinar os objetos de estudo. Ainda não sabíamos, mas o fato de não serem
dispostas ideias diferentes fechava-nos em apenas uma ou duas ideologias. Isto
correspondia exatamente ao significado do sufixo ismo em nossa língua portuguesa: um sistema fechado de ideias.
Sistemas estes que pareceram nos sufocar durante muitos anos, pois clamávamos
por conhecer mais e mais pensamentos, novas interpretações, novas formas de ver
o mundo.
Ainda no
mesmo período ingressamos no curso de filosofia da Universidade Federal do Rio
de Janeiro. Nesses anos as possibilidades se multiplicaram. Não porque
consideremos uma cadeira melhor do que a outra, mas porque é próprio da
filosofia lidar com as correntes de pensamento. E nestes anos de investigação
filosófica, estabelecendo contato com as mais diversas formas de apreciação do real – e também do ideal –, descobrimos que o princípio não está na adoção dos métodos
de análise econômica ou cultural como achávamos. O princípio (a arché/ arkhé/ ἀρχή), está na consideração, reflexão e adoção daquilo
que é Verdade. E este é o ponto pelo
qual iniciaremos a nossa busca, isto é, explicando o conceito que aplicamos do
que é ou não Verdade.
Há ao menos
dois conceitos de Verdade: o imanente
e o transcendente. Quanto ao imanente, o conteúdo do pensamento não se
relaciona com qualquer coisa fora de si mesmo, isto é, algo é Verdade no pensamento quando concorda
consigo mesmo (HESSEN, 2003). Isso acontece porque o investigador/ pesquisador
que adota a imanência, adota também o idealismo, onde não há objeto fora do
sujeito, constituindo assim um monismo onde toda relação se dá no interior do
pensamento do próprio sujeito. O critério usado para estabelecer o que é Verdade neste caso é o de ausência de
conflitos e discordâncias, o que inicialmente é muito profícuo, não fosse por
um problema: os objetos de estudo, neste caso, devem ser sempre ideais, ou
seja, devem estar sempre em nosso pensamento (tal como acontece nos estudos de
lógica e de matemática). Em nosso trabalho pessoal, como melhor desenvolveremos
logo a seguir, o objeto que analisaremos se encontra – também – fora do nosso
pensamento, isto é, a Escola cuja história estudamos é uma entidade real,
passível de apreciação por outros pesquisadores. Isto, de fato, impossibilita a
adoção deste critério idealista de Verdade.
Por outro
lado, admitindo a Verdade como
transcendente, estamos afirmando que colocamos em análise um objeto que está
fora de nós mesmos, estamos afirmando que a referida Escola é um objeto real
com o qual o nosso pensamento se relaciona, estabelecendo assim, uma relação
sujeito-objeto. Assim sendo, a distância entre o nosso pensamento e o objeto
com o qual nos relacionamos é, neste caso, um elemento que nos obriga a abraçar
critérios específicos para o estabelecimento da Verdade em nosso trabalho. Queremos dizer com isso que
consideraremos como Verdade o que o
objeto revelará como certeza imediata, tratando evidentemente de problematizá-la
segundo os preceitos que discutiremos nos próximos parágrafos. Por ora,
admitiremos aqui então o caminho da empiria a despeito de um racionalismo
absoluto de impossível aplicação ao nosso objeto real, no caso, uma Escola, um
prédio, autoridades públicas, professores, alunos, entre outras entidades
envolvidas com a sua história.
Desta
forma, optamos por não acolher quaisquer verdades a priori, isto é, doutrinas anteriormente estabelecidas que
fatalmente engessariam o esforço de nossa análise. Enveredar por tal caminho
poderia velar o objeto, ainda pouco estudado, diante das múltiplas
possibilidades de investigação, o que fatalmente empobreceria o nosso trabalho.
Por outro lado, entendemos também que empregar o relativismo absoluto de
algumas concepções mais radicais da história enquanto ciência não nos levaria a
conhecimento algum, posto que sem bases ou sem princípios que usem a busca pela Verdade como elemento motor, não pode haver construções mais
sólidas do que a metáfora do Castelo de Cartas.
Uma construção enigmática e linda, aparentemente sólida, feita sobre bases que
levam o mesmo material usado nas lajes e torres superiores da construção do fato educacional. A metaforização aqui
se faz necessária devido ao momento relevante para a definição do objeto e das
metodologias de investigação (MAZZOTTI & OLIVEIRA, 2000).
A metáfora, ou algo semelhante, governa tanto a
aquisição quanto o desenvolvimento da linguagem. O que vem a seguir como
refinamento é mais um discurso cognitivo, no seu sentido mais literal (QUINE
apud MAZZOTTI & OLIVEIRA, 2000: p. 15).
O que
queremos dizer, mais diretamente, é que o relativismo imanente não se relaciona
com objeto, como já apontamos, pois para os que o adotam não há objeto além do
próprio sujeito restando apenas uma análise essencialmente subjetiva. E o nosso
objeto, o nosso fato educacional,
como veremos, necessita de uma análise circunspecta como a que queremos propor.
Concluímos
que, diante de um objeto não explorado, seria interessante uma maior amplitude
de sua análise, mesmo frente as dificuldades de falta de tempo e de recursos
que muitas vezes acometem a um pesquisador. E, assim refletimos: se o
dogmatismo encobre mais o objeto do que o expõe e se o relativismo simplesmente
desconsidera qualquer Verdade que
nele possa ser apreendida nós decidimos por tomar o prudente – e ético –
caminho do meio[1], como tanto apontou Aristóteles, em Ética a Nicômaco (2006), para sabermos
qual paradigma devemos adotar. Servimo-nos, então, do ceticismo médio ou ceticismo
acadêmico de Arcesilau e Carnéades (apud HESSEN, 2003), segundo o qual a Verdade o é quando temos uma proposição
que dela se aproxima. Isto quer dizer que consideraremos verdadeiro aquilo que
se revelará no decorrer de nossa pesquisa como Verossimilhante.
DOIS TRABALHOS COMO EXEMPLO
Tanto em
nossa dissertação de mestrado, quanto em nosso projeto de doutorado, tivemos
como objeto a história da Escola Normal Carmela Dutra (ENCD), um instituição criada
em 1946 no Rio de Janeiro (então Capital Federal), no bairro suburbano de
Madureira. O modelo para criação de tal escola foi o renomado Instituto de
Educação (IE), pensado e erigido por Anísio Teixeira e Fernando de Azevedo no
ano de 1932. A ENCD esteve submetida ao IE desde o período de sua criação até o
ano 1953, quanto conquistou a autonomia administrativa e passou a responder
diretamente à Secretaria de Educação e Cultura do Distrito Federal. Para o
doutorado, mais especificamente, estendemos nosso prazo de estudo do ano de
1954 até o ano de 1982, quando a referida Escola Normal, torna-se “Colégio
Estadual Carmela Dutra”, em um flagrante processo de crise do programa
institucional de formação de professores normalistas.
Consideramos,
a partir deste evento, que o surgimento da referida escola é um marco na
expansão da formação de professores primários no Brasil, bem como um evento de
consolidação dos valores republicanos e capitalistas no país, pois foi por
conta de sua criação, na então zona
suburbana remota[2] – o bairro de Madureira – que as crianças do sertão carioca[3]
(CORRÊA, 1936) puderam ser mais bem servidas das professoras dos
primeiros anos do ensino público e gratuito oferecido pelo Estado. Mais tarde,
com o crescimento do bairro de Madureira, aproveitaremos para avaliar quais são
os efeitos desta unidade escolar na região.
Esse trabalho de mestrado, defendido em março de
2015 cujo título As normalistas chegam ao
subúrbio – A história da Escola Normal Carmela Dutra: da criação à autonomia
administrativa (1946 – 1953), bem como o projeto de doutorado, avaliado
em 2016, com o título de Estrela de
Madureira – A Escola Normal Carmela Dutra: de referência cultural dos subúrbios
à crise do programa institucional (1954 – 1982), a nosso ver, devem ser tratados
sob dois aspectos: por um lado, as políticas públicas e a situação econômica do
país tornar-se-iam mais relevantes ao focarmos a macro história desta
instituição ressaltando a importância da difusão de novos valores em uma nação
de pensamento reconhecidamente rural na época. Por outro lado, diante do
contato que tivemos através de entrevistas que realizamos, o contato com o
cotidiano das suas memórias e com a informação de que eles se tornaram os
primeiros alunos normalistas do subúrbio – o que conferia um alto grau de
status nos anos 1940 –, temos a história, em sua dimensão micro, analisada em
outra escala (REVEL, 1998) e, talvez, mais próxima daquilo que nossas
representações aceitam como “realidade”. O passo seguinte, naturalmente, é pensar
como deveríamos proceder diante dessas possibilidades.
A nossa opção
para ambos os trabalhos, ao final, não consta simplesmente como
historiográfica, mas como uma decisão de como realizar uma investigação de História da Educação; uma vez que as ciências
pedagógicas ainda não têm bem definidas as suas fronteiras quanto às
disciplinas que dentro dela dialogam. Não se trata aqui de estudar o que Laélia
Moreira, em sua tese de doutoramento Pedagogia
e Educação: a construção de um campo científico (2007) realiza ao adentrar
pela discussão teórica da construção do campo, mas de abordar como as
discussões sobre determinados paradigmas históricos podem e devem ser travadas
dentro do campo por uma questão ética do próprio pesquisador.
OS PARADIGMAS EM QUESTÃO PARA ANÁLISE DO FATO
EDUCACIONAL
Tais
explicações que realizamos, de certa forma, antecipam as reflexões que
desenvolvemos diante da escolha do método de análise historiográfica que buscamos
usar. Encaminhados desta forma, podemos finalmente apontar como
problematizaremos os saberes com as quais tivemos e teremos contato neste
estudo.
Em nossos
estudos de pós-graduação no CESPEB/ UFRJ e também no curso de mestrado e
doutorado em história da educação, linha de pesquisa na qual se inserem nossos trabalhos,
estivemos novamente à frente das discussões acadêmicas que circundam o uso do
economicismo ou o uso do culturalismo como abordagens de análise
historiográfica. Por mais uma vez voltamos nossas ponderações sobre qual modelo
deveríamos empregar em nosso Projeto. Contudo, desta vez, como já expusemos,
chegamos um pouco mais armados sobre qual caminho da verdade (alethéia) empregaríamos. Restou-nos,
portanto, expor os porquês de nossa escolha.
Ciro Flamarion
Cardoso, um historiador de grande produção marxista e que marcou nossa formação
desde o princípio na apresentação do livro Domínios
da História (2011), organizado por ele e por Ronaldo Vainfas, destacou a
mediação entre o sujeito e o objeto dentro do modelo chamado teoria modificada do reflexo apontando a
responsabilidade no sujeito que analisa os eventos passados. Como o passado não
pode ser modificado, o que altera nesta dinâmica é a visão do historiador no
tempo em que ele vive.
Deve notar-se que isto não se confunde com o
relativismo dos historicistas, já que a teoria marxista do conhecimento é um
realismo (o objetivo do conhecimento histórico não é constituído pelo sujeito:
a práxis atual intervém na apropriação cognitiva de algo que existe por si
mesmo e pode ser conhecido): trata-se, mais exatamente, da concepção da verdade
científica como limite absoluto a que tendem verdades relativas ou parciais
cujo alcance maior ou menor depende do tipo de conhecimento histórico que
permite a prática social de cada época ou fase (CARDOSO, 2011, p. 5).
Cardoso
(2011) começa a tratar assim do Paradigma
da pós-modernidade, no qual toda e qualquer base estável e segura de
conhecimento – ou possível verdade – passa a ser questionada. Momento no qual
também surgem as primeiras críticas mordazes ao marxismo enquanto modelo.
Ronaldo
Vainfas, em artigo de 2011, intitulado História
das Mentalidades e História Cultural, por outro lado, aponta que o
culturalismo também sofreu críticas no sentido de como ele começou a ser usado
no Brasil:
Entre
nós, historiadores brasileiros, a crítica só veio no final da década [1980],
porque foi também tardia a difusão das mentalidades na pesquisa universitária
nacional. Foi Ciro Flamarion Cardoso que a fez de maneira mais aguda em um de
seus Ensaios racionalistas, acusando
os historiadores das mentalidades de se dedicarem ao estudo do periférico, de
iluminar fantasmas e, sobretudo, de negar as totalidades sintéticas da
história, renunciando a posturas explicativas e propagandeando uma história
“reacionária” desprovida de contradições (VAINFAS, 2011, pp. 117-118).
A despeito
das acusações trocadas sobre a qualidade da produção destes dois modelos
metodológicos o próprio Cardoso termina seu artigo apontado algo que nos
interessa enquanto posicionamento: “Aquilo, porém em que me recuso firmemente a
acreditar é que erros e exageros passados justifiquem erros e exageros atuais
de signo contrário” (CARDOSO, 2011). E Vainfas ainda coloca:
Ciro Flamarion Cardoso, em artigo citado
anteriormente, viu na crise do racionalismo a brecha por onde as mentalidades
invadiram o território dos historiadores, retirando-lhes o afã explicativo e
inibindo-os quanto ao compromisso social e crítico inerente ao métier de l’historien. (VAINFAS, 2011:
p. 131).
Sem negar a
contribuição da história cultural na expansão da historiografia, após as
postulações do paradigma da pós-modernidade, a historiografia foi repensada à
luz de filosofias como as de Nietzsche e Heidegger (de onde se serviram
Foucault, Deleuze e Derrida).
O primeiro ponto, se aplicado à história-disciplina,
levaria a afirmar que os pretensos centros (entenda-se: lugares de onde se
fala) a partir dos quais se afirmariam diversas posturas diante da mesma não
são lugares legítimos ou naturais, mas são universais: são sempre particulares,
relativos a grupos restritos e socialmente hierarquizados de poder (em outras
palavras: não há História; há histórias “de” e “para” os grupos em questão). O
segundo ponto significa que no mundo em que agora vivemos, qualquer
“metadiscurso”, qualquer teoria global, tornou-se impossível de sustentar
devido ao colapso da crença nos valores de todo tipo de hierarquização como
sendo universais, o que explicaria o assumido niilismo intelectual
contemporâneo, com seu relativismo absoluto e sua convicção de que o
conhecimento se reduz a processos de semiose e intepretação (hermenêutica)
impossíveis de ser hierarquizados de algum modo que possa pretender ao consenso
(CARDOSO, 2011, pp. 14-15).
Diante
dessa História e paradigmas rivais
(para citar o título do texto de Cardoso, 2011) e com a intenção de melhor
localizar nosso projeto de estudos, nos colocaremos diante de algumas das
diferenças apontadas mais didaticamente por Peter Burke (1992), quando compara
a historiografia tradicional à nouvelle
histoire.
Segundo
Burke (1992), o paradigma tradicional
aponta que a história diz respeito essencialmente à política, enquanto que o relativismo
cultural abriu caminho para pontos a serem estudados como a infância, a morte, a loucura, o clima, os odores, a sujeira, a limpeza. Tais assuntos, caros ao culturalismo, dependendo da perspectiva
do pesquisador podem ser classificados como importantes ou frugais por conta da
ideologia usada. Também, contam para a realização de um julgamento sobre a
relevância ou não da forma com que abordamos o objeto, a influência do meio
acadêmico bem como a pressão de órgãos supra-acadêmicos (MORAES, 2013) para
produção de artigos e pesquisas relacionados a assuntos que, por muitas vezes,
estão alheios aos temas de interesse dos alunos.
Ora,
como poderíamos abrir mão da importância da política no processo de expansão de
uma rede inteira de ensino? Ainda mais se considerarmos que o Rio de
Janeiro que estudamos é nada menos do que a Capital Federal do país, e a Escola
modelo, da qual é criada a primeira Escola normal suburbana – com o nome de uma
primeira dama[4] ainda viva – é também o modelo de Escola normal
para o restante do Brasil. Entretanto, como deveríamos avaliar a riqueza das
entrevistas com os ex-alunos e professores da instituição que nos insere em um
universo subjetivo de experiências individuais, onde a infância, o clima, os
odores, entre outras coisas, aparecem como os eventos mais significativos de
suas histórias de vida? Como deixar essa
exuberância de experiências e detalhes de lado?
Justamente
por conta das experiências narradas por quem viveu aquela época e dos
documentos históricos oficiais que tivemos contato, ficamos diante do que
talvez seja a mais marcante diferença entre a nova história e a tradicional:
a preocupação com a história vista de
baixo, característica da primeira ou a história vista de cima, característica tradicional do fazer historiográfico.
Ao abrir
mão de uma perspectiva ou de outra perderíamos questões importantes para a história da educação, seja de uma
política nacional de educação, seja de impressões legítimas de como tal
política de educação tem efeito na sala de aula e no cotidiano da vida dos
jovens. Laélia Moreira aponta que Anísio Teixeira, educador de importância para
a história da educação brasileira e da Escola que tratamos como objeto, vai
apostar na Educação como Arte.
(...) Anísio Teixeira define a educação como arte.
Apenas concebida nesse sentido é que pode ser considerada autônoma, como
autônomas são todas as artes. Diferentemente do Direito, que é uma arte formal,
a educação é uma arte material, à maneira da Medicina e da Engenharia. E, assim
como não há ciência nem de curar nem de construir, mas arte fundada em
conhecimentos de várias ciências, o mesmo ocorre com a educação. Trata-se de
submeter esta prática, que antes do método científico progredia por tradição,
ao crivo do estudo objetivo e promover o desenvolvimento cumulativo e contínuo
do ato de educar. Desse modo, educar tornar-se-ia uma atividade menos empírica
e intuitiva por meio dos conhecimentos das “ciências-fonte” que estabelecem as
condições científicas para o tratamento dos currículos, dos métodos de ensino e
da administração de escolas. A proposta principal do autor consiste em tomar os
resultados do progresso da Antropologia, da Sociologia e da Psicologia como
instrumentos intelectuais para elaborar técnicas, processos e modos de operação
apropriados à função prática da Educação (MOREIRA, 2007, pp. 56).
O expressivo
pensamento de Anísio Teixeira de que a educação
é arte não deixaria de lado qualquer das duas perspectivas historiográficas
que trouxemos à baila, principalmente que nenhuma delas pode nos oferecer uma
verdadeira perspectiva holística do objeto. Assim, ainda no caminho do meio, definimos por abordar
nosso objeto usando o modelo historiográfico que julgamos trazer melhor
contribuição para a Academia.
Destarte, vale
apena ressaltar, que nunca antes, pelo menos não academicamente, havíamos
realizado um aprofundado exame de nossas próprias influências; refletindo sobre
quem somos para nós mesmos e para a sociedade em que vivemos. Estivemos, neste
tempo de autoanálise, mais submetidos à batida frase do pórtico do templo de
Delfos propagada pelo filósofo Sócrates: “Conhece-te a ti mesmo!”. E
continuamos a nos perguntar: Deveríamos
nos concentrar na fartura dos documentos oficiais ou na fartura das
experiências contadas pelas memórias dos ex-alunos da escola?
Tomando o
nosso objeto de análise como exemplo, podemos dizer que este é o tipo de dilema
teórico no qual todo historiador que avalia o seu percurso deve se debruçar.
Enfim, seria melhor o objetivismo
político-econômico de caráter ideológico, que ignora as várias faces
possíveis da Verdade histórica; ou o relativismo cultural radical, igualmente
ideológico, que já parte do pouco razoável princípio de que não pode sequer
tanger a Verdade?
ÉVÉNEMENTIELLE OU NOUVELLE HISTOIRE?
A política é para o nosso estudo algo essencial apenas
porque encontramos em nossas pesquisas fontes oficiais importantíssimas? Ora, a história de uma escola construída em uma zona suburbana remota para atender a
parte rural da população não teria sentido se não fosse a descoberta de tais
documentos chancelados pelo Estado. Além disso, estudar a ENCD nos obrigou,
necessariamente, a conhecer a vida da primeira dama e o contexto histórico do
país nos anos de 1940 a 1950. As mudanças na legislação dos anos 1960 e 1970
que tiveram efeitos na alteração do nome e das funções da unidade são
essenciais para conhece-la. Assim, a política é fundamental para o nosso
estudo.
A cultura, de
outro modo, mostrou-se igualmente interessante ao nosso estudo, uma vez que,
decidimos não abrir mão das memórias que nos foram confiadas pelas ex-alunas da
primeira turma da escola que tivemos o privilégio de entrevistar, tal como os
professores que narram as mudanças na unidade nos anos de
ditadura-empresarial-militar. Deveríamos
deixar de lado as suas histórias cotidianas, os relacionamentos com as alunas
do Instituto de Educação, com os professores e com as demais autoridades
envolvidas na criação e manutenção da escola?
Descobrimos
então, que a intersecção problematizada da história oficial política com a
história cultural das pessoas que viveram a criação e o crescimento da ENCD
tornou o nosso estudo não apenas mais complexo, mas também mais rico e –
certamente – também mais prazeroso. Sem dúvida, escolha essa que levou em consideração
o objeto enquanto real; bem como a
postura do pesquisador, enquanto ente ético que parte do princípio de que existe
Verdade.
Despojada
de radicalismos ideológicos ou metodológicos a história cultural nos ofereceu, a
partir da promessa que lemos em Peter Burke (1992) e Ronaldo Vainfas (2011) de
que poderíamos transitar entre o político, o econômico e o saber em sua
dimensão micro, um leque maior de análise e possibilidade de contribuição para
a história da educação enquanto campo de estudo.
Depois da
avaliação que fizemos da melhor forma de abordagem de nosso objeto, percebemos
a oportunidade de tratar não apenas de política e economia, mas também de
aspectos de formação da identidade da escola e dos alunos na década de 1940.
Como coloca António Nóvoa, uma Instituição
deve ser analisada como um todo.
As escolas constituem uma territorialidade
espacial e cultural, onde se exprime o jogo dos atores educativos internos e
externos, por isso, a sua análise só tem verdadeiro sentido se conseguir
mobilizar todas as dimensões pessoais, simbólicas e políticas da vida escolar,
não reduzindo o pensamento e a ação educativa a perspectivas técnicas, de
gestão ou de eficácia stricto sensu (NÓVOA,
1995, p. 16).
Tomamos,
portanto, o posicionamento de trabalhar com a perspectiva macro, quando
tratarmos de políticas públicas educacionais, um assunto imprescindível para
entender a instalação da ENCD, e com a dimensão micro ao trabalharmos com a
memória dos alunos das primeiras turmas da escola. Por conta disso, no que diz
respeito ao objeto que escolhemos como exemplo, decidimos proceder nossa pesquisa dentro do
escopo de instrumentos que nos é oferecido pela história cultual, pois desse cruzamento de dados e olhares,
pretendemos contar de forma mais interessante, agradável e consistente história
da Escola Normal Carmela Dutra.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Tal caminho
interdisciplinar está posto não apenas em nossa formação de graduação e
pós-graduação, mas também em nossos estudos do curso de mestrado e, atualmente,
doutorado em educação na UFRJ, onde além das disciplinas de nossa formação em
história e filosofia, a sociologia, a geografia e a antropologia, assim como a
lógica enquanto conteúdo filosófico-matemático presente em estudos
quantitativos, entre outras áreas da ciência e campos filosóficos, se fazem
presentes. O que avaliamos diante disso é a nossa tentativa de evitar um
conhecimento recortado, impróprio do que consideramos pertinente às ciências
educacionais.
REFERÊNCIAS
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BRAUDEL, Fernand. O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico.
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CORRÊA,
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MAZZOTTI, T. B.; OLIVEIRA,
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Acesso em 23 de Agosto de 2013.
[1] A doutrina do meio-termo de
Aristóteles condena os extremos. A falta de coragem é a covardia, bem como o
excesso da coragem é caracterizado por ser uma temeridade. É usado o clássico
exemplo do soldado que foge de sua função em comparação ao soldado que corre
para provar seu valor diante de outros soldados, incorre nos casos de covardia
e temeridade, respectivamente, pois nos dois casos todo o batalhão de soldados
é colocado em risco por conta do comportamento de apenas um soldado (2006).
[2] A região de Madureira, mais
especificamente a Estrada Marechal Rangel onde foi instalada a ENCD, era
classificada como “2ª Zona Suburbana Remota e de difícil acesso” pelo
Secretário Geral de Educação e Cultura, conforme mostrou as publicações
variados jornais, dentre eles Correio da Manhã, 29 de dezembro de 1949, p. 12 e
o Diário de notícias, 30 de dezembro de 1949 pp.3-5. Disponível em <http://hemerotecadigital.bn.br/>.
Acessado em 14 de março de 2014.
[3] A palavra “Sertão” significa
região do interior, longe da costa e das povoações. Utilizamos neste trabalho a
expressão “Sertão Carioca”, com base no livro de título homônimo de autoria de Armando
Magalhães Correa. Contudo, vale ressaltar a origem do termo: O primeiro uso da
palavra teria sido feito no primeiro documento literário do Brasil. Pedro Vaz
de Caminha, ao se referir ao território a ser colonizado pelos portugueses,
usou o vocábulo “Saartão”. Nos anos 1930 3 1940, Madureira era considerada zona
fronteiriça a região rural do Distrito Federal.
[4] Dona Carmela Dutra, esposa do
então presidente da República Eurico Gaspar Dutra.
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